Corte de verbas da ciência prejudica reação à pandemia e desenvolvimento do País

Na avaliação do presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, o que tem acontecido nos últimos governos federais é um “terraplanismo econômico”. "Para a área econômica, a ciência e a tecnologia são supérfluas. Tanto é assim que apenas 0,3% do Orçamento federal vai para essa área", diz em reportagem da Agência Senado

A pandemia do novo coronavírus fez os olhos do mundo, como poucas vezes antes, se voltarem para a ciência. A grande expectativa é que os cientistas finalmente apresentem uma vacina que consiga frear a propagação do vírus, impedir novas mortes e permitir que as pessoas retomem a vida normal. Os pesquisadores estão correspondendo à expectativa. Já há vacinas em fase final de desenvolvimento em laboratórios de diferentes partes do mundo.

Os olhos dos brasileiros, claro, também se voltaram para a sua própria ciência. O cenário que encontraram aqui, porém, não foi tão inspirador quanto o que viram lá fora. A pandemia atingiu o Brasil no momento em que a área de ciência, tecnologia e inovação enfrenta a pior situação financeira dos últimos tempos.

— Quando a pandemia chegou, o Brasil foi pego no contrapé. Para enfrentá-la, é preciso ter dinheiro que garanta laboratórios equipados e pessoal qualificado. Em vez disso, o que temos é o desmonte de muitas das nossas instituições por falta de recursos financeiros — afirma o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu de Castro Moreira.

Pela proposta orçamentária de 2021, elaborada pelo governo federal e em análise no Congresso Nacional, o Ministério da Ciência e Tecnologia, por exemplo, terá para investimento R$ 2,7 bilhões, sem contar os já esperados bloqueios que serão impostos no correr do ano. Se os parlamentares confirmarem a cifra, os cofres do ministério continuarão indo ladeira abaixo. Para o ano atual, como comparação, o valor reservado no Orçamento federal é de R$ 3,7 bilhões. No ano passado, foi de R$ 5,7 bilhões.

Embora haja algum dinheiro privado, o grosso do setor científico no Brasil é custeado pelo governo. Os cientistas trabalham majoritariamente nos institutos públicos de pesquisa e nos programas de pós-graduação das universidades federais e estaduais, em áreas tão distintas quanto as relacionadas a fármacos e agronegócio, aeronáutica e petróleo, satélite e biocombustível, meio ambiente e defesa.

As principais fontes de recursos dos cientistas brasileiros provêm do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), ligados ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Igualmente importante é a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação. Todas essas fontes deverão ter menos recursos para distribuir em 2021.

— Se os cortes previstos para 2021 forem mesmo implementados, haverá impacto nos programas de bolsas, tanto na pós-graduação quanto na educação básica, e isso afetará bastante os programas de fomento à pesquisa — alerta o presidente da Capes, Benedito Aguiar.

Atualmente, a Capes concede bolsas a quase 100 mil pesquisadores. O CNPq financia perto de 80 mil bolsistas — quase 25% a menos do que em 2014, quando havia 105 mil bolsistas.

Ainda na esfera federal, instituições de referência também sofrem com a perda de recursos, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde, e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), vinculada ao Ministério da Agricultura.

Os governos estaduais têm suas próprias agências de fomento à ciência. A mais tradicional delas é a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), que, da mesma forma que as entidades federais, está lutando para não perder verbas.

Diante do risco de a ciência ter ainda menos dinheiro em 2021, entidades da área se reunirão na semana que vem com senadores e deputados federais para mostrar o estado em que os laboratórios e as pesquisas se encontram. Os cientistas esperam convencer os parlamentares a alterar a proposta orçamentária e destinar mais recursos para o setor.

O Ministério da Ciência e Tecnologia foi criado em 1985, logo após o fim da ditadura militar. Em 1988, a atual Constituição brasileira foi uma das primeiras no mundo a dedicar um capítulo específico à ciência. Um dos dispositivos constitucionais diz que a pesquisa científica receberá “tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público”.

Desde então, o impulso mais significativo foi dado após a virada do ano 2000, primeiro com a criação de novas universidades federais e a expansão das já existentes e depois com o programa Ciência sem Fronteiras, que oferecia bolsas para brasileiros estudarem e pesquisarem no exterior. As verbas federais para o setor científico chegaram ao auge em 2015. Depois disso, só caíram. O Ciência sem Fronteiras foi encerrado em 2017.

Uma das consequências da falta de verbas é a fuga de cérebros. Para se dedicar à sua pesquisa, um bolsista de mestrado recebe R$ 1,5 mil mensais. Um bolsista de doutorado, R$ 2,2 mil. Os valores não são reajustados desde 2013. Por causa disso, muitos pesquisadores preferem se mudar para instituições estrangeiras. Outros acham financeiramente mais vantajoso simplesmente abandonar o mundo acadêmico.

É certo que a arrecadação do poder público tem diminuído nos últimos anos e que a pandemia também provoca impacto negativo na economia e nas receitas do governo. Mesmo assim, cientistas e parlamentares dizem que, havendo vontade política, é possível, sim, poupar o setor científico de grandes perdas orçamentárias. O senador Izalci Lucas (PSDB-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação, diz:

— Os governantes, de forma geral, só atuam pensando na próxima eleição, e não nas próximas gerações. Preferem investir em programas que tragam resultados imediatos e tenham bastante visibilidade, garantindo votos. A ciência não é assim. Os resultados científicos que vemos hoje costumam ser fruto de anos de investimento e nem sempre podem ser mostrados na propaganda eleitoral. Isso ajuda a explicar o descaso com a ciência.

Izalci é autor de um projeto de lei que proíbe o contingenciamento dos recursos do FNDCT (PLP 135/2020). Para este ano, do montante de R$ 5,2 bilhões, está prevista a liberação de meros R$ 600 milhões, ficando o restante contingenciado. O dinheiro do FNDCT não se origina do orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia, mas sim de parte da arrecadação de uma série de tributos federais. Entre 2004 e 2019, o fundo financiou mais de 10 mil projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação, inclusive em empresas como a Embrapa e a Embraer.

O senador apresentou o projeto em maio. Diante das claras dificuldades da ciência brasileira para fazer frente à pandemia, os senadores o aprovaram praticamente por unanimidade (71 votos favoráveis e 1 contrário) em agosto. O projeto agora está na Câmara dos Deputados.

Na avaliação do presidente da SBPC, o que tem acontecido nos últimos governos federais é um “terraplanismo econômico” — expressão que faz referência aos negacionistas que vão contra a ciência e o próprio bom senso e dizem acreditar que a Terra é plana, e não redonda. Ildeu de Castro Moreira explica:

— Trata-se de uma visão estreita que predomina na área econômica do governo. Isso já existia no último governo e está se acentuando neste. São gestores que colocam a questão financeira acima de tudo e vão cortando recursos onde puderem, olhando apenas os números, sem se importar se os setores são estratégicos para o país. Para a área econômica, a ciência e a tecnologia são supérfluas. Tanto é assim que apenas 0,3% do Orçamento federal vai para essa área.

Na avaliação de Marcia Barbosa, uma das diretoras da Academia Brasileira de Ciências, a ciência tem cada vez menos dinheiro público porque os brasileiros em geral simplesmente não conseguem enxergar a importância do setor:

— Até a pandemia, ninguém falava em ciência. De repente, todo mundo começou a falar. Com isso, ficou claro o quanto as pessoas não sabem o que é o processo científico. Chega a ser assustador. As fake news encontraram terreno fértil. Isso tem a ver com as deficiências das nossas escolas. A educação científica é muito pobre. Se as pessoas não sabem o que é a ciência, não a valorizam. Se elas não a valorizam, elas não cobram do seu senador e do seu deputado que a protejam. Assim fica fácil fazer os cortes de verbas.

Atualmente, a Academia Brasileira de Ciências conduz as campanhas educativas Ciência Gera Desenvolvimento e Eu Confio na Ciência. No “novo normal” trazido pela pandemia, a entidade entende que cientistas poderiam deixar seus laboratórios por alguns momentos para ir aos colégios e aos meios de comunicação explicar de forma clara à sociedade por que a ciência é imprescindível. Barbosa exemplifica:

— As pessoas precisam entender que, se elas têm mais de 30 anos e estão vivas, isso se deve à ciência. Na Idade Média, pouca gente passava dos 30 anos. A longevidade aumentou porque a ciência melhorou a agricultura e vieram mais alimentos, produziu medicamentos e vacinas, criou o saneamento básico, trouxe conhecimento e informação. O próprio governo e a área econômica deveriam enxergar a importância da ciência. Se não fosse pelas nossas pesquisas científicas, não estaríamos extraindo tanto petróleo em águas profundas e produzindo tanta soja no Cerrado, que estão entre as maiores fontes de riqueza do Brasil. Tirar dinheiro da ciência é dar um tiro no pé.

A Agência Senado solicitou entrevista com porta-vozes do CNPq, do Ministério da Ciência e Tecnologia e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), que gere os recursos do FNDCT, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Agência Senado