Justiça como medida de exceção

Na versão contemporânea do autoritarismo, a Justiça não é a mesma para todos e réus são tratados, não como humanos que cometem erros, mas como inimigos, afirma Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, em entrevista para a nova edição do Jornal da Ciência. Para ele, valores comuns da sociedade são atacados, entre eles, a ciência

Começou na década de 90 com a chamada guerra às drogas. A Justiça e seu braço executor, a polícia, passam a usar processos penais e técnicas de investigação de perfil autoritário que vão muito além do combate ao tráfico.

Ao descrever essa transformação, o advogado Pedro Serrano aponta como, a partir desse novo direcionamento, o sistema judicial foi restringindo direitos de defesa, padrões probatórios e outras garantias em processos penais de exceção.

O objetivo parece ser uma forma de controle social, no qual as vítimas são, em geral, jovens, negros, pobres das periferias. Dessa forma, a Justiça passa a dar suporte a uma nova forma de autoritarismo que Serrano define como “líquido”.

Professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa, Serrano é autor das obras “Autoritarismo e golpes na América Latina” e “A Justiça na Sociedade do Espetáculo: Reflexões públicas sobre direito, política e cidadania”.

Em entrevista ao Jornal da Ciência, ele jogou luz sobre esse tipo de autoritarismo que está se espalhando pelo mundo.

Jornal da Ciência – Em seus artigos, livros e entrevistas o senhor tem usado a expressão autoritarismo líquido. Do que se trata?

Pedro Serrano – É uma nova forma de autoritarismo que se instala no País, marcadamente a partir da década de 90, composto não por ditaduras ou por governos de exceção, mas por medidas de exceção no interior da democracia, que convivem com medidas democráticas. E líquido porque liquefaz um pouco a diferença entre uma ditadura e democracia.

JC – Este é um fenômeno brasileiro ou mundial?

PS – É uma tendência geral do autoritarismo no mundo ocidental. São medidas que têm que cumprir uma aparência, uma roupagem, uma capa, uma maquiagem democrático-jurídica, mas de um conteúdo material tirânico de perseguição ao inimigo. Na análise dos dados da pesquisa que eu iniciei nos anos 2000, essa tendência vem vindo desde a década de 90, com a guerra às drogas, onde você passa a ter o uso de certas técnicas, processos penais e investigação de exceção de um lado e a necropolítica (*), que começa ali a ser criada, de outro. É uma forma de controle social, na qual a vítima, em geral, é o jovem, negro e pobre das periferias.

JC – Como confluem os fenômenos da Justiça de exceção e da necropolítica?

PS – Essas formas de autoritarismo são inicialmente realizadas no interior do direito penal comum. Primeiro, contra a figura do traficante, depois migra para qualquer crime comum praticado pela pobreza. Se desenvolve uma dupla técnica: de um lado, os processos penais de exceção que levam ao aprisionamento em massa. Para você ter ideia, nós saímos no começo dos anos 90 de um nível razoável face aos índices mundiais de aprisionamento, para nos tornarmos o terceiro país do mundo que mais aprisiona. O aprisionamento em massa fornece “exércitos” para o crime organizado nas prisões, o que também leva a um aumento exponencial do índice de homicídios no Brasil, país que mais mata em números absolutos, com a polícia que mais morre no mundo. Então há uma aproximação desse direito penal de exceção com a necropolítica. São fenômenos advindos da mesma fonte, implicando em novas formas de autoritarismo que surge de um ambiente social cada vez mais favorável, não ao Estado Democrático de Direito, mas ao Estado securitário ou de polícia.

JC – Como esse fenômeno acontece em outros países?

PS – Nos Estados Unidos e na Europa o inimigo é o estrangeiro, o imigrante. A figura que é combatida é nomeada de terrorista. Cria-se uma estrutura na qual o chefe do Executivo é agente das medidas de exceção, realizadas dentro de um regime jurídico diferenciado, de segurança nacional. Então há uma ambivalência: de um lado, há o direito penal comum e as sanções estatais acontecendo razoavelmente dentro dos direitos humanos e das constituições. Do outro, as medidas de exceção acontecendo preponderantemente nesse regime de segurança nacional. A diferença aqui na América Latina é que quem impõe as medidas de exceção é o sistema de Justiça, não o Executivo ou o Parlamento.

JC – E de que forma esse processo penal de exceção se transplanta para a política?

PS – No Brasil, essa técnica migra para a política a partir do caso do Mensalão. Algumas lideranças políticas são sancionadas, punidas em processos que não trazem uma estampa adequada a uma condenação. No fundo, são perseguidos porque é uma forma de combater um governo de esquerda. Mas essa técnica, é importante dizer, não é só utilizada pela direita contra a esquerda. Na Venezuela eu observei que o governo de esquerda utilizou a mesma técnica contra ativistas de direita.

JC – A Lava Jato também entra nessa lógica?

PS – A Lava Jato se inicia e estrutura um processo democrático de verdadeiro combate à corrupção, pegou gente realmente culpada. Só que se criou um conceito que não é nem jurídico, nem democrático, nem institucional, mas de marketing. Esse conceito, que não existe em nenhum lugar do direito penal, reúne todo um conjunto de investigação e processos. Na Europa houve uma busca de legitimidade numa questão que é correta, que é o combate ao terrorismo, que é um problema verdadeiro. Mas as ações contra o terrorismo e os terroristas se expandem muito além do que deviam, sendo utilizadas para fins políticos de controle e punição de indesejáveis. No Brasil é a mesma coisa, você tem o problema da corrupção, que é verdadeiro, mas você teve um segundo problema agora, que é a luta contra a corrupção sendo usada politicamente, não para fins de verdadeiro combate à corrupção.

JC – Em seu livro “A Justiça na Sociedade do Espetáculo”, o senhor aponta um afastamento do sistema judiciário do universo dos tribunais e uma aproximação da lógica dos meios de comunicação. Pode se dizer que foi o que se deu nesses grandes processos jurídico-políticos como o Mensalão e a Lava Jato?

PS – Sim, foi exatamente isso. O sociólogo Niklas Luhmann, que eu cito nesse livro, vê a sociedade como um grande sistema integrado a subsistemas – o direito, a economia, a comunicação social – que se relacionam entre si. Essa relação vai ser democrática quando você preserva a autonomia lógica desses sistemas. Então, por exemplo, o subsistema jurídico opera pela lógica do lícito-ilícito; o de comunicação social atua pela lógica da notícia-não notícia. A interação entre esses dois sistemas é democrática quando é racional, ou seja, quando atende à lógica racional de cada um. Por exemplo: o tribunal aplicar a lei corretamente e a mídia noticiar isso e produzir uma boa notícia. Mas quando a justiça passa a decidir pela lógica da notícia há uma corrupção desse sistema, diz Luhmann. O que houve no Brasil naqueles casos foi o espetáculo do processo penal funcionando com “uma intromissão indevida da comunicação social no ambiente do direito”. Juiz tratado como herói, réu condenado como um imoral, ministro ou juiz que desse uma decisão favorável ao réu tratado como bandido. Com isso, houve uma indução do julgamento, os tribunais deixaram de julgar estritamente pela lei, pelo lícito-ilícito, e passaram a julgar segundo a opinião publicada que é, em essência, poder político.

JC – Como o autoritarismo líquido atinge a ciência?

PS – A democracia implica divergências, consensos e diálogo. A sociedade democrática é assim, tem divergências, mas tem também um “commom ground”, um solo comum de valores que estabelecem relações políticas antagônicas entre adversários, nunca entre inimigos. Ou seja, eu posso nunca me conciliar com você, mas reconheço que é importante a sua existência no jogo político para que haja uma sociedade livre. O autoritarismo ataca esse “commom ground”, ataca os valores comuns da sociedade, mais que isso, ataca também o que (o sociólogo Émile) Durkheim chama consenso lógico. Esse consenso lógico sobre a forma como o homem vê e aceita o conhecimento sobre o meio ambiente que nos cerca é a ciência.

JC – E como se dá esse ataque?

PS – Os fatos relatados pela ciência são postos em questão. Isso ocorreu no nazismo, ocorreu no fascismo, ocorreu em alguma medida nas ditaduras e ocorre hoje. A gente quase chega ao ponto de perguntar “qual sua opinião sobre as horas agora?” O “terraplanismo” é talvez o maior exemplo disso. Quer dizer, bases científicas elementares são postas em questão. Não há sociabilidade possível – juntando as ciências sociais com as ciências naturais – sem um acordo mínimo na sociedade a respeito das referências geográficas, de horário, de forma do mundo, de como o homem interage com a natureza. Tem que haver um consenso lógico mínimo para haver sociedade. A sociedade também é caracterizada pela forma como ela conhece e interage com o meio ambiente que cerca o ser humano. Portanto, a forma científica é típica na modernidade. Quando eu coloco em questão a ciência, estou colocando a própria modernidade em questão. Por isso que o autoritarismo reacionário era – e é até hoje, nessas novas formas – antagônico à ciência.

JC – O senhor vê alguma saída?

PS – A coisa mais difícil é falar de algo que está vivo, de seres humanos. É melhor a gente falar de necrópsia do que de biópsia. Objetivamente, meu foco é mais analisar o que está ocorrendo. A solução é mais complexa.

(*) Necropolítica é um conceito desenvolvido em 2003 pelo filósofo, historiador, teórico político e professor universitário camaronense Achille Mbembe.

Matéria publicada originalmente na Edição 790 do Jornal da Ciência. Veja aqui a edição completa.

Janes Rocha – Jornal da Ciência