Liberdade, ainda que tarde

Em palestra no Museu do Amanhã, na última quinta-feira, 25, Marianne Wiesebron, da Universidade de Leiden, na Holanda, e Ildeu de Castro Moreira, presidente da SBPC, falaram sobre o papel da Universidade na defesa da liberdade de pensamento e expressão

Pedra fundamental para qualquer sistema social que se considere democrático, “liberdade de expressão” é um termo caro a muita gente. Caro, também, porque já custou muitas vidas em tempos (ainda) mais conturbados que os dias em que vivemos.

A universidade, como instituição, não raramente é o lugar onde se espera que a liberdade de pensamento e de expressão se manifeste de forma mais vívida e concreta. Tanto que o lema de algumas delas reverencia a livre expressão de ideias.

Libertatis Praesidium, ou “bastião da liberdade” é o mote a Universidade de Leiden, na Holanda, por exemplo. Em palestra no Museu do Amanhã (25/01), Marianne Wiesebron, especialista em Estudos Latino-Americanos e coordenadora regional para a América Latina e Caribe da universidade, observa que em 1940, já com a Segunda Guerra Mundial em curso, Leiden viu a manifestação inequívoca da defesa da liberdade e da vida nas palestras de Rudolph Cleveringa, Lambertus van Holk e Tom Barge.

Os três eram, à época, acadêmicos respeitados em direito (Cleveringa), anatomia (Van Holk) e teologia (Barge). Van Holk fazia questão de ressaltar a contribuição judaica para a filosofia teológica; Barge dizia que não havia uma “raça alemã”, mas sim um “povo alemão”, baseado em seus conhecimentos de medicina. E Cleveringa, cujo discurso se tornou célebre e dá nome a um ciclo de palestras que acontece até hoje na Holanda, era radicalmente contra a resignação forçada de professores judeus em universidades holandesas.

À época, “a universidade fechou e professores recebiam estudantes em casa, enquanto muitos outros iam para a resistência”, observa Wiesebron. A ocupação nazista da Holanda, prossegue ela, deixou cicatrizes profundas no país, que vê correntes de extrema direita ganharem força política. “A percepção da presença muçulmana na Europa não tem nada a ver com a realidade”, lembra ela, “talvez também porque as universidades não se manifestam tanto quanto deveriam sobre o tema” – um claro retrocesso. “A palestra de Cleveringa nos lembra que a integridade deve fazer parte da vida acadêmica”.

Do lado de cá, a tradição pela defesa da liberdade na academia é mais recente – mas nem por isso implica em menos conflito. Ildeu de Castro Moreira, físico e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), lembra que a universidade é, “por excelência, o lugar de enfrentamento entre visões excludentes”. E pode ser que o melhor exemplo do cultivo dessa democracia de pensamento tenha se manifestado no pensamento de Anísio Teixeira, que foi um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB) – criada para trazer reflexões que influenciassem a sociedade brasileira. Fechada em 1965 durante a ditadura, talvez a UnB “ainda não tenha se recuperado completamente sob a perspectiva que Anísio e Darcy (Ribeiro) tinham”, observa Castro. “Com o AI-5, professores foram demitidos e aposentados compulsoriamente em todo o País” – mesmo os que não eram abertamente engajados contra a ditadura militar.

A ditadura, prossegue ele, deixou marcas no pensamento e na atitude da academia brasileira, que precisa pisar em ovos ao politizar discursos devido à crescente judicialização da política. “Hoje, na universidade, as pessoas morrem de medo de exercer funções de liderança”, diz Moreira. Casos recentes dão alguns porquês: o de Luiz Carlos Cancellier, ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, que, sob acusação de acobertar desvios de verba de um programa de educação à distância – ainda sem provas cabais – se suicidou no fim do ano passado, é um deles. “Prisões coercitivas sem provas excedem o limite da legalidade”, frisou Moreira. “A ingerência da judicialização estreita na universidade é muito perigosa”.

Mais insidiosas são iniciativas como a Escola Sem Partido – segundo o pesquisador, um disfarce de ideologia como contra-ideologia: “é claro que a educação não é neutra. Obviamente não deve ser partidarizada, mas precisa ser aberta”.

Esta abertura, por enquanto, parece ser a grande luta nos espaços de conhecimento, seja em salas de aula de Ensino Médio Brasil afora ou em auditórios de universidades na Holanda. “Bastião da Liberdade? Nem sempre: organizar manifestações e protestos contra a política dos Estados Unidos não é algo muito bem visto porque ‘os americanos libertaram os holandeses da guerra’. Além disso, a posição da mulher, não apenas na Universidade de Leiden mas na academia holandesa em geral, é bastante problemática”, arremata Weisebron. No Brasil, a situação da mulher no alto escalão acadêmico também não é muito diferente – e há outros problemas a se enfrentar, como a burocracia que, segundo Ildeu de Castro Moreira, atravanca a liberdade de pesquisa: “o cerceamento burocrático é outra forma de coibir o trabalho acadêmico”.

Avanços não acontecem de forma linear, mas é preciso se estar atento aos retrocessos – principalmente para que não sejam confundidos com passos à frente.

 

Meghie Rodrigues, jornalista e pesquisadora do Museu do Amanhã, especial para o Jornal da Ciência