Mulheres negras: violência e lutas por reconhecimento

Estudo com mulheres negras moradoras da comunidade de Heliópolis, acadêmicas e mulheres transgênero foi apresentado em conferência da 70ª Reunião Anual da SBPC

Conhecer a experiência da violência na vida de mulheres negras e quais as estratégias elas adotam para lidar com isso. Esse foi o objetivo de um estudo apresentado da SBPC Afro e Indígena, durante a 70º Reunião Anual da SBPC, na Universidade Federal de Alagoas, UFAL, em Maceió. A pesquisa foi coordenada pelo psicólogo e professor Alessandro de Oliveira dos Santos, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho da Universidade de São Paulo (USP).

O estudo utilizou entrevistas com mulheres negras moradoras da comunidade de Heliópolis, um bairro de classe média baixa na Zona Sul da cidade de São Paulo e que abriga mais de 180 mil habitantes; e também com acadêmicas negras da Universidade de São Paulo (USP) e com mulheres transgênero. As perguntas exploraram os processos de empoderamento, experiências de preconceito e cenas de violência. “Meu objetivo era estudar o fenômeno da violência, entendida como aquilo que impede o indivíduo de desenvolver seu potencial pleno”, explicou Santos. “A psicologia social trabalha com a interação indivíduo-sociedade. O meu interesse é entender o racismo enquanto um fenômeno psicossocial que se desdobra em preconceito: sua manifestação individual, e a discriminação, sua manifestação social”, disse.

Conforme explicou Santos, o racismo assume mais de uma forma. O racismo anglo-saxão se baseia em segregação e apartheid. A maioria das teorias sobre racismo foi feita buscando compreender esse modelo. Existe, no entanto, outro tipo de racismo, o católico-ibérico, que se organiza em torno da ideia de intimidade, proximidade e violência. Foi esse racismo que triunfou no Brasil. Nesse caso, o preconceito e a discriminação só se manifestam em situações de conflito ou disputa. “Um bom exemplo são as manifestações racistas nos campos de futebol brasileiros na forma de xingamentos para jogadores negros”, lembrou o psicólogo. Fora disso, segundo ele, vigora a ideologia da democracia étnico-racial.

No entanto, o regime de democracia étnico-racial de desfaz em um mito quando temos uma sociedade que estabelece tratamentos diferentes para determinados grupos. Essas diferenças são baseadas em estereótipos que podem ser positivos ou negativos. “O estereótipo diz respeito mais ao grupo do que ao indivíduo e quando o sujeito carrega o estereótipo do grupo, ele não consegue se diferenciar enquanto indivíduo e, consequentemente, a pessoa não consegue atingir a igualdade perante os demais indivíduos”, explicou. Foi o que aconteceu com uma das mulheres entrevistadas durante o estudo. Mulher negra com ensino superior, ela contou que estava em um elevador junto com uma mulher idosa branca. “Era um sábado e eu estava indo fazer as unhas. Em determinado momento, a senhora me olhou com um olhar cheio de comiseração e disse que era uma pena eu estar indo trabalhar em pleno sábado”, contou. “Essa é uma expressão de preconceito racial. Ao invés de enxergar o indivíduo, a mulher branca enxergou o grupo, viu uma mulher negra que ‘só’ poderia estar indo trabalhar”, explicou Santos.

As entrevistas revelaram diferentes experiências de preconceito e violência e estratégias de defesa. O significado de ser negra envolve situações de preconceito na escola, como exemplificado na fala de uma estudante negra de 28 anos: “Eu entendi que era uma mulher negra na escola. A professora perguntou o que desejávamos ser quando nós crescêssemos e eu respondi: ‘eu quero ser uma astronauta’. E ela disse ‘mas pessoas negras não fazem este tipo de trabalho’. Isso foi um choque pra mim”. As mulheres negras universitárias também relataram um sentimento de não pertencimento ao ambiente universitário. “Elas fazem um esforço para permanecer neste ambiente hostil que afeta sua saúde mental. Uma jovem negra de 31 anos que entrevistamos ficou deprimida e tentou o suicídio”, contou Santos. Ao mesmo tempo, ocorre um distanciamento delas em relação ao seu lugar de origem. Para elas o cabelo funciona como símbolo de empoderamento, e o ativismo é uma das estratégias mais frequentes para lidar com a violência.

As mulheres negras pobres, por outro lado, tiveram mais dificuldade de falar sobre violência. “No caso delas, o cabelo não se transforma em um símbolo de afirmação e as estratégias de defesa estão ligadas à religião ou a movimentos de geração de renda. Já as mulheres negras transgênero apontaram a arte como um meio de enfrentar o preconceito e a discriminação”, enumerou Santos.

Ainda é um desafio mudar esse cenário. Depende de políticas afirmativas que possibilitem que as pessoas sejam vistas como indivíduos e não um grupo. No entanto, o pesquisador defende uma reconfiguração da premissa que enxerga no negro alguém conformado pelo preconceito e pelo racismo. “Ninguém é só efeito de uma opressão. A igualdade étnico-racial passa por um processo que eu chamo de suspeita crítica, que questiona uma epistemologia etnocêntrica que analisa o racismo”, afirmou. O pesquisador trabalha a partir da perspectiva intelectual das teorias do feminismo negro. Foi dessa corrente que surgiu o conceito de interseccionalidade, criado pela pesquisadora e feminista norte-americana Kimberlé Williams Crenshaw. Ela define a interseccionalidade como formas de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação: sexismo, racismo, patriarcalismo. “O que eu quero é abrir espaço para esses estudos na psicologia”, conclui.

Patricia Mariuzzo – Jornal da Ciência