Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade da SBPC defende autonomia universitária nas eleições

“A proibição de divulgação de eventos no âmbito das universidades no período eleitoral atenta contra a liberdade acadêmica, ao confundir divulgação e difusão de conhecimento com propaganda institucional e ao se apropriar do trabalho intelectual como se institucional fosse”, ressalta em nota endossada pela Associação Brasileira de Antropologia e pelas Ciências Sociais Articuladas

Confira o documento na íntegra:

Nota Técnica

Autonomia Universitária e Eleições

Chegaram ao Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade da SBPC notícias envolvendo diferentes instituições de ensino superior que estariam negando divulgação de eventos em seus canais oficiais, sob a alegação de que, nos três meses que antecedem as eleições, é vedada “a publicidade institucional”. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a proibição envolveu uma live promovida pelo Núcleo de Pesquisa da Política (NUPERGS) em que seria debatido o livro Limites da Democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro, do professor Marcos Nobre, e um novo episódio do podcast “Hora do Trampo”, com o título Experiências de trabalho na ditadura: arrocho salarial e dignidade violada.  Na Universidade Federal de Pernambuco, a tese intitulada Mídia e Conservadorismo: O Globo, a Folha de São Paulo e a ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo”, a despeito de ter conquistado no último dia 11 de agosto a “Menção Honrosa no Prêmio CAPES de Tese de 2022”, também teve a sua divulgação interditada nos canais institucionais.

O Observatório entende que a proibição, cujos pressupostos são a Lei 9.504/97, que estabelece normas para as eleições; a Lei Complementar 64/90, que determina casos de inelegibilidade; e a cartilha da Advocacia-Geral da União (1), que trata das condutas vedadas aos agentes públicos federais em eleições 2022, ofende o princípio da liberdade acadêmica, tal como expresso na Constituição Federal e interpretado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 548, e na compreensão que lhe conferem órgãos internacionais e regionais de monitoramento de tratados e convenções ratificados pelo Brasil.

A Constituição Federal, em seu art. 206, II, põe sob o manto da liberdade acadêmica a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”. Ou seja, as instituições de ensino, e muito especialmente as universidades, são campo não apenas de produção do conhecimento, mas também de sua disseminação. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, no Comentário Geral nº 13, ao analisar o art. 13 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (2), que trata do direito à educação, destacou tópico específico sobre “liberdade acadêmica e autonomia institucional”. Considerando que, na experiência do Comitê, “professores e estudantes do ensino superior são particularmente vulneráveis a pressões políticas e outras que põem em risco a liberdade acadêmica”, enfatizou que “os membros da comunidade acadêmica são livres, individual ou coletivamente, para buscar, desenvolver e transmitir conhecimentos e ideias por meio de pesquisa, ensino, estudo, debate, documentação, produção, criação ou escrita” (destaque acrescido).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, junto com a Relatoria Especial para os Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (REDESCA) e a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão (RELE), lançou em 2021 os “Princípios Interamericanos sobre Liberdade Acadêmica e Autonomia Universitária”(3). O Princípio I, que trata do “âmbito de proteção da liberdade acadêmica”, estabelece: “a liberdade acadêmica implica o direito de toda pessoa buscar, gerar e transmitir conhecimentos, a formar parte das comunidades acadêmicas e a realizar trabalhos autônomos para levar a cabo atividades educativas de docência, aprendizagem, ensino, investigação, descobrimento, transformação, debate, busca, difusão de informações e ideias e de acesso à educação de qualidade de forma livre e sem temor a represálias. Adicionalmente, a liberdade acadêmica tem uma dimensão coletiva, consistente no direito de a sociedade e seus integrantes a receber informações, conhecimentos e opiniões produzidas no marco da atividade acadêmica e a obter acesso aos benefícios e produtos da investigação e inovação” (destaques acrescidos).

A Recomendação da UNESCO relativa à condição do pessoal docente de ensino superior, de 1997 (4), já em suas considerações esclarece que “só se pode disfrutar do direito à educação, ao ensino e à investigação em um ambiente de liberdade e autonomia acadêmicas das instituições de ensino superior e que a livre comunicação das conclusões, hipóteses e opiniões se situa no centro mesmo do ensino superior e constitui a melhor garantia da precisão e objetividade da formação acadêmica e da investigação” (destaque acrescido). Ao tratar dos “objetivos e políticas da educação”, no item IV, ponto 12, acrescenta que “se deve promover e facilitar a publicação e a difusão dos resultados obtidos pelo pessoal docente de ensino superior em suas investigações, a fim de contribuir para que adquiram a reputação que merecem e promover o avanço da ciência, da tecnologia, da educação e, em termos gerais, da cultura”. E, no item V, ao dispor sobre “direitos, obrigações e responsabilidades das instituições”, adverte, no ponto 20, que “as instituições de ensino superior não devem utilizar a autonomia como pretexto para limitar os direitos do pessoal docente de ensino superior mencionados nesta Recomendação ou nos demais instrumentos internacionais que se enumeram no Apêndice”.

Por ocasião do julgamento da ADPF 548, a Advocacia-Geral da União defendeu não ser possível ao Supremo Tribunal Federal definir antecipadamente quais as condutas ocorridas no interior dos espaços acadêmicos estavam cobertas pela liberdade acadêmica, uma vez que haveria que se ponderar, em cada caso, os princípios da liberdade de expressão e da autonomia universitária e, de outro, os postulados da regularidade, igualdade e legitimidade democrática do processo eleitoral. A Corte, no entanto, decidiu, por unanimidade, que a liberdade acadêmica é um limite intransponível para as restrições da legislação eleitoral. A Ministra Cármen Lúcia, relatora do feito, assentou que “o processo eleitoral, no Estado democrático, fundamenta-se nos princípios da liberdade de manifestação do pensamento, da liberdade de informação e de ensino e aprendizagem, da liberdade de criação e artística, da liberdade de escolhas políticas, em perfeita compatibilidade com elas se tendo o princípio, também constitucionalmente adotado, da autonomia universitária”.  O Ministro Ricardo Lewandowski, por sua vez, afirmou que “ainda que se admita que as vedações estabelecidas pela legislação eleitoral podem, em tese, incidir com maior rigor em determinadas repartições públicas, tal não se aplica às instituições de ensino superior, nas quais a autonomia acadêmica e a livre manifestação do pensamento, por definição constitucional, hão de ser as mais amplas possíveis”.

A proibição de divulgação de eventos no âmbito das universidades no período eleitoral atenta contra a liberdade acadêmica, ao confundir divulgação e difusão de conhecimento com propaganda institucional e ao se apropriar do trabalho intelectual como se institucional fosse.

 

Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade

Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

Associação Brasileira de Antropologia (ABA)

Ciências Sociais Articuladas (CSA)

Notas:

1)220629_cartilha_agu PDF

2)Promulgado pelo Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992

3)2021_Principiosinteramericanos-LibertadAcademica-AutonomiaUniversitaria_SPA PDF

4)ILO_UNESCO_Recommendation_Status_Teaches_Users_Guide_2008_ESP PDF

 

A nota está disponível em PDF neste link.

 

Jornal da Ciência