Esposa de Ulisses, Penélope começou a tecer um manto enquanto esperava a volta do marido da Guerra de Troia. Mas, se terminasse o manto teria que se casar com outro homem. Então, durante a noite, Penélope desfiava o manto tecido ao longo do dia, transformando seu trabalho em uma eterna tessitura. É esse o olhar que o historiador João Pinto Furtado lança sobre a Inconfidência Mineira e sobre a figura de Tiradentes. “A história é um eterno diálogo entre o passado e o presente”, afirmou o pesquisador em conferência nesta segunda feira, 17, na Reunião Anual da SBPC. Por isso, assim como Penélope tecia um manto novo todos os dias, nós construímos novas percepções sobre o passado a partir de nossas inquietações do presente.
Professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da UFMG, Furtado analisou obras de arte sobre Tiradentes, apoiando-se em farta coleção documental da Inconfidência Mineira. É a partir desse cruzamento que ele examina, por exemplo, a tela “Tiradentes esquartejado”, de Pedro Américo (1893), obra icônica sobre a Inconfidência, presente em boa parte dos livros didáticos de história. “A obra é verdadeira em seu sentido estético e artístico, mas não no sentido histórico porque as partes do corpo de Tiradentes nunca foram expostas juntas. De acordo com os autos da condenação, a sentença determinava que as partes fossem expostas separadamente em locais públicos”, explica.
A mitificação de Tiradentes como um herói brasileiro é parte da tentativa de criar uma representação republicana. “A virada do século XVIII para o XIX é um momento em que a República brasileira está se reinventando e era preciso encontrar um patrono, um símbolo unificador. A construção do mito de Tiradentes como o herói da Inconfidência mineira foi parte desse processo. Um homem já morto, sem ligações com a igreja e que não tinha descendentes, sua imagem foi formatada para uma finalidade específica” conta o pesquisador. Segundo ele, não é coincidência termos um pico de publicações sobre a Inconfidência às vésperas da proclamação da República. Muitas obras de arte, que retratam um Tiradentes sacralizado, com barba e túnica, reforçam a construção dessa simbologia do herói que se sacrifica pela nação.
No entanto, uma análise minuciosa nos autos do processo dos envolvidos na Inconfidência mostra, por exemplo, que a princípio Tiradentes sequer foi considerado o líder do movimento. “Depois que foi preso, em 1788, ele foi interrogado apenas uma vez, permanecendo na cadeia por vários meses sem despertar interesse da Coroa Portuguesa. Só ao final do julgamento é que isso muda”, afirma Furtado. Diante da dificuldade de imprimir penas mais duras aos demais integrantes do movimento, muitos deles membros da aristocracia mineira, Tiradentes surge como alternativa para aplicar uma pena exemplar. “Eu acredito que isso deveu ao fato dele ser um dos membros do movimento que se dedicou mais à propaganda das ideias liberais. Ele era um ativista, mas ele não participou da idealização do movimento, nem tinha posição de liderança, como posteriormente a historiografia tradicional nos ensinou”, finaliza.
Patricia Mariuzzo, especial para o Jornal da Ciência