Letícia Pataxó tem 21 anos e vive em uma das aldeias da Terra Indígena Comexatibá, município de Prado, no Sul da Bahia. No começo dos anos 2000, um grupo de funcionários da Funai iniciou os estudos de identificação do território dessa comunidade onde vivem mais de 700 indígenas. Mais de 10 anos o processo de reconhecimento oficial ainda está na segunda etapa, o que significa que o território está “identificado”. Atualmente, as Terras Indígenas a serem administrativamente demarcadas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) devem seguir os procedimentos dispostos no Decreto 1775/1996. As fases do processo de reconhecimento são: 1. estudos de identificação; 2. aprovação da Funai; 3. contestações; 4. declaração dos limites; 5. demarcação física; 6. homologação e 7. registro. Presente na plateia da mesa “Direitos territoriais dos povos indígenas: avanços e retrocessos em perspectiva antropológica”, parte da programação da SBPC Indígena, Letícia contou que após a conclusão dos estudos de identificação o grupo foi esquecido: “Ninguém mais apareceu lá”. Aparentemente o processo está parado”, disse. Esse é um dos vários exemplos de retrocessos na proteção e demarcação das terras indígenas no Brasil nos últimos anos, situação agravada pela crise política e econômica.
“Uma série de ações desse governo rompeu com uma política que estava vigorando há pelo menos 14 anos, fortalecendo setores ligados ao agronegócio e flexibilizando direitos territoriais indígenas”, afirmou Ricardo Verdum, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro da Comissão de Assuntos Indígenas (CAI) da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). São exemplos a aprovação da PEC 215, que retira do Executivo a exclusividade de demarcar terras indígenas e a instituição de Comissão Parlamentar de Inquérito com o objetivo de “investigar” a atuação da Fundação Nacional do Índio (Funai) no processo de reconhecimento de direitos territoriais de povos indígenas.
“O que estamos vendo é um novo ‘velho indigenismo’ ganhando força para emplacar empreendimentos de grande impacto ambiental, como hidrovias e rodovias, com intuito de escoar produção agrícola e da mineração e de explorar os recursos naturais presentes nos territórios indígenas”, afirmou o professor para uma plateia lotada. Esses projetos visam, por exemplo, a ampliação da infraestrutura logística do chamado Arco Norte, região que compreende os estados de Rondônia, Amazonas, Amapá, Pará e segue até o Maranhão, para escoar produtos como soja, milho, bauxita, alumínio, minério de ferro e manganês. “Vivemos um momento em que a manutenção dos direitos das comunidades indígenas está claramente ameaçada e isso, aliado à restrição orçamentária, cria um cenário fortemente propício ao acirramento de conflitos”, afirmou Verdum.
Já o professor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG, Ruben Caixeta de Queiroz, que compôs a mesa de debates, destacou a possibilidade de paralisação dos processos de demarcação de terras indígenas, especialmente fora da Amazônia, como foi mencionado pela estudante Letícia Pataxó. “A despeito do que tivemos no período pós-Constituição de 1988, ainda há um longo caminho a percorrer. Os territórios ainda não demarcados estão na mira de grandes empreendimentos e de projetos de arrendamento de terra para uso para lavoura e mineração”, disse. Segundo ele informou, boa parte das terras indígenas fora da Amazônia Legal não estão regulamentadas. “Se na Amazônia Legal o esforço é para proteger o que está demarcado, no resto do País o desafio é demarcar”, completou.
Qual o papel dos antropólogos diante dessas ameaças e demandas? Essa foi uma das perguntas que guiou a fala do professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e consultor do Ministério Público Federal e da Funai, Fábio Mura, que coordenou a mesa. Para ele, é fundamental que a análise antropológica presente em todos os processos de demarcação de Terras Indígenas possa se descolar dos processos administrativos e informar o público sobre as conclusões dos seus estudos. “O que gera insegurança – e violência – é o desconhecimento. Quando a sociedade não é bem informada sobre como se dão os processos de demarcação cria-se terreno fértil para ruralistas afirmarem absurdos como, por exemplo, que os territórios indígenas vão abarcar cidades inteiras”. A luta pelos territórios indígenas passa, portanto, por uma melhor comunicação com a sociedade.
Por Patricia Mariuzzo – para o Jornal da Ciência