Há tempos que se fala, nos ambientes acadêmicos do estado, que os sucessivos governos de Santa Catarina não enxergam a ciência como fator fundamental para o desenvolvimento sustentável e assim descumprem a própria Constituição em suas especificações financeiras para o setor. Apesar de apresentar inúmeras condições para “decolar” no cenário científico nacional, SC carece de uma política de estado consistente para alavancar seu desenvolvimento científico e tecnológico e assim freia o enorme potencial de seus pesquisadores. O que pouco se discute são os números, havendo uma grande desinformação entre os próprios cientistas, que dependem de fomento para produzir conhecimento e inovação. Qual o tamanho de nosso déficit em investimento científico? Quão longe estamos de cumprir o Art. 193 da Constituição catarinense?
“O Estado destinará à pesquisa científica e tecnológica pelo menos dois por cento de suas receitas correntes, delas excluídas as parcelas pertencentes aos Municípios, destinando-se metade à pesquisa agropecuária, liberados em duodécimos.”
Em 2017, a Secretaria Regional da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) em SC iniciou um levantamento visando responder a essas e outras perguntas. Em novembro, publicamos uma breve análise preliminar, baseada em dados que recebemos da FAPESC (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de SC). Pouco depois, ainda em 2017, recebemos informações mais detalhadas da Secretaria de Estado da Fazenda (SEF) e, há apenas poucos dias, recebemos vasta documentação, também encaminhada pela SEF, referente aos relatórios do Tribunal de Contas de SC (TCE/SC), incluindo as contas consolidadas de 2015 a 2017. No tocante à pesquisa científica e tecnológica, uma importante diferença entre os documentos recebidos, é que as análises do TCE/SC elevam o orçamento executado a níveis não tão distantes do que preconiza a Constituição, próximo aos 400 milhões de Reais, enquanto que os dados fornecidos no final de 2017 pela SEF mostram repasses quase dez vezes menores, abaixo dos 50 milhões, sendo esta diferença explicada pela inclusão ou não das despesas com pessoal da EPAGRI (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina), que giram em torno dos R$ 340 milhões. Quando estas despesas não foram consideradas, nos dados que recebemos da SEF em 2017, os repasses à EPAGRI na “Subfunção 571 – Desenvolvimento Científico” foram de apenas R$ 4,81 milhões em 2017.
Não discutiremos aqui o mérito de se classificar ou não a folha de pagamento de uma instituição amplamente reconhecida pela sociedade que, ao mesmo tempo em que presta um serviço essencial para SC, sob as formas de pesquisa e extensão rural, tem menos de 10% dos seus funcionários classificados como pesquisadores (fonte: Balanço Social EPAGRI 2017). Tampouco nos aprofundaremos no fato de que o TCE/SC, nos itens 3.2.4 e 6.3 de seu relatório 2017/2018, não classifica tais despesas na “Função 19 – Ciência e Tecnologia” e sim na “Função 20 – Agricultura”. Focaremos nossa atenção na outra metade dos investimentos previstos na Constituição, aquele mínimo de 1% da receita que deveria ser destinado à FAPESC, que é a agência executora da política estadual de ciência, tecnologia e inovação (CT&I) para o avanço de todas as áreas do conhecimento (Art. 4º, Decreto 965, 2012). Os montantes a serem repassados, evidentemente, poderiam variar em função do volume total das receitas. No gráfico a seguir, extraído do relatório do TCE/SC, vemos que as receitas arrecadadas pelo estado têm crescido de ano a ano, mesmo em tempos de crise.
Mas como têm se comportado as aplicações em CT&I? Como pode-se observar na figura abaixo, elas caíram 36% entre 2014 e 2017, de acordo com os dados do TCE/SC classificados como “Função 19 – Ciência e Tecnologia”. Tal queda, no entanto, não resulta de uma queda de arrecadação, como se viu acima, nem de um corte generalizado nas várias áreas. Pelo contrário, para a maioria dos setores houve aumento. No gráfico que segue, pinçamos algumas áreas que ilustram essa tendência e desfazem o argumento de que a CT&I está fazendo sua parcela de sacrifício, assim como todos os outros setores. As despesas com publicidade e propaganda, por exemplo, não apenas foram sempre superiores aos investimentos em CT&I, como ainda cresceram 28% no auge da crise econômica. Tais dados indicam que existe uma política de retirada seletiva de verbas da CT&I, ou, como disse o Presidente da SBPC, Prof. Ildeu Moreira, em entrevistarecente sobre o panorama nacional: “estamos sendo escolhidos para sermos cortados”.
Retornando à pergunta levantada no início deste artigo: quanto deveria estar sendo aplicado e quanto falta para que se cumpra o mandamento constitucional? Segundo o TCE/SC, o montante devido em 2017 era de R$ 470,97 milhões. Nós temos uma interpretação que, no entanto, difere desta, salvo melhor juízo. Se considerarmos as receitas correntes daquele ano (R$ 33,05 bilhões) e deduzirmos apenas as transferências aos municípios (R$ 5,74 bilhões), como prevê o Art. 193, teríamos uma base de cálculo de R$ 27,32 bilhões para a aplicação mínima em pesquisa científica e tecnológica, ao invés dos R$ 23,55 bilhões estimados pelo governo. Ocorre que este deduz da receita corrente, entre outras coisas, R$ 3,3 bilhões destinados aos poderes judiciário e legislativo, o que explica boa parte da diferença. Na figura mostrada a seguir, ilustramos estas estimativas, com base nos diferentes documentos fornecidos pela FAPESC, SEF e TCE/SC, usando os anos de 2017 e 2018 como referência do aguçamento da crise.
Pode-se observar que, mesmo que tomemos como base os valores do próprio governo, a FAPESC deveria ter recebido do estado R$ 235,48 milhões em 2017. No entanto, recebeu somente 15% (R$ 35,73 milhões) deste valor, ou seja, 0,15% das receitas correntes declaradas. Mais preocupante ainda, o relatório do TCE/SC informa que, deste valor irrisório repassado à FAPESC, R$ 4,74 milhões foram despesas empenhadas pela EPAGRI (Tabela 117 do relatório de 2017), sobrando, ao que parece, apenas R$ 31,13 milhões para todas as outras áreas do conhecimento, o que equivale a 0,13% das receitas correntes reconhecidas pelo próprio governo. Como se a situação já não fosse suficientemente grave, o governo conseguiu aprovar na lei orçamentária de 2018 uma redução de 46,86% no orçamento da FAPESC, em comparação com 2017. Resta saber qual será o balanço do repasse, a ser feito em breve, com a conclusão da execução orçamentária do corrente ano.
A posição do legislativo
São os Deputados da Assembleia Legislativa (ALESC) que aprovam, anualmente, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), proposta pelo executivo no primeiro semestre e votada no legislativo na metade do ano, e a Lei Orçamentária Anual (LOA), votada em dezembro. A primeira serve de base para a segunda. Foi na LOA aprovada em dezembro de 2017, por exemplo, que o legislativo autorizou a queda abrupta no orçamento da FAPESC, ilustrada acima. Nesse contexto, na segunda metade de 2017, a Secretaria Regional da SBPC abriu canais de diálogo junto aos poderes executivo e legislativo de SC. Paralelamente, iniciamos uma série de reuniões abertas na capital e no interior, para as quais vêm sendo convidadas as principais instituições de ensino e pesquisa de cada região, além de outras organizações.
Durante o processo, identificamos alguns deputados dispostos a apoiar nossa ideia de realizar uma Audiência Pública para discutir, de forma ampla, democrática e suprapartidária, a CT&I como Política de Estado em SC, o que ocorreu no dia 20 de junho de 2018. Contando com as presenças dos Presidentes da SBPC, ABC (Academia Brasileira de Ciências) e FAPESC, o evento foi um sucesso, lotando o Plenarinho da ALESC. Um documento, representando nossas principais demandas, que será apresentado aos candidatos ao governo do estado, foi tornado público, recebendo a assinatura de 42 instituições e centenas de pessoas.
A ampla representatividade da Audiência Pública resultou em uma proposta de emenda aditiva a ser incorporada na LDO. Caso aprovada, ela incluiria no orçamento de 2019 a exigência de que se cumpra o Art. 193 da Constituição. Poucas horas após sua elaboração, a proposta já havia sido assinada por 25 dos 40 deputados da casa, incluindo a maioria dos membros da Comissão de Finanças e Tributação (CFT), que teria a missão de acolher ou não a emenda. Para defender nosso pleito, enviamos e-mails aos deputados e nos reunimos com o Presidente da CFT, que se comprometeu a estudar a matéria e nos dar um retorno, o qual não aconteceu. Na reunião decisiva da CFT, ocorrida nos dias 10 e 11/07, estivemos presentes na ALESC, carregando cartazes que pediam a inclusão da emenda no relatório da comissão. Paradoxalmente, mesmo tendo sido assinada pela maioria dos membros da comissão e dos deputados que votam no plenário, nossa proposta foi rejeitada em ambas as instâncias.
Não vemos isso como uma derrota, mas sim como uma demonstração da dimensão do desafio que teremos que enfrentar. Não se trata apenas de convencer, mas também de pressionar e exigir que o poder público de SC cumpra sua lei máxima e inclua a CT&I em sua pauta de prioridades, para o fortalecimento da democracia, a construção da cidadania e o desenvolvimento sustentável baseado no conhecimento. Essa luta continuará este ano até dezembro, época em que a LOA será posta em votação. Até lá, esperamos que nossos deputados revejam suas posições.
Em resumo, respondendo à questão financeira e política levantada nesse artigo: para que SC cumpra a Constituição Estadual, com base nos valores liquidados de 2017, faltariam pelo menos 200 milhões de Reais a serem investidos em todas as áreas do conhecimento, por meio da FAPESC. Ante a pergunta que frequentemente ouvimos, sobre de onde tirar tais recursos, respondemos que não se trata de “retirar” de outros setores para aplicar em CT&I, mas sim de parar de transferir para outros setores, o que é devido constitucionalmente à CT&I catarinense desde 1989.
Sobre o autor:
André Ramos é secretário regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência de SC (SBPC-SC)