O Brasil ganhou em janeiro uma legislação sobre fundos patrimoniais filantrópicos, os chamados fundos de endowment, mas seus efeitos sobre o financiamento à pesquisa científica por meio de doações privadas devem ser menos expressivos do que o previsto. Isso porque foram vetados todos os três artigos que tratavam de incentivos fiscais para doadores. Um dos dispositivos permitia a pessoas jurídicas deduzir o equivalente a 1,5% ou 2% do lucro operacional para doações destinadas à formação desses fundos, cujos dividendos se destinam a financiar projetos de interesse público. “Da forma como foi sancionada, a lei vai estimular pouco as doações privadas. Embora a norma dê maior segurança jurídica para os fundos, os vetos presidenciais enfraquecem seu alcance”, avalia Rudinei Toneto Júnior, responsável pelo Escritório de Parcerias da Universidade de São Paulo (USP), órgão criado em 2018 com a missão de viabilizar o ingresso de dinheiro privado em projetos da instituição. Os vetos devem ser analisados pelo Congresso Nacional ainda em fevereiro.
A razão do veto, de acordo com a justificativa do Poder Executivo, é que as isenções tributárias para doadores gerariam uma renúncia de receitas incompatível com as leis de responsabilidade fiscal e das Diretrizes Orçamentárias de 2018. A alegação foi contestada por instituições científicas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e o Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap). Em uma carta divulgada no dia 30 de janeiro, essas e outras entidades representativas pediram a derrubada dos vetos, com o argumento de que os incentivos fiscais representam o principal atrativo para a criação de fundos patrimoniais. “Convém observar que os beneficiários serão as instituições vinculadas à administração pública, cujas atividades serão apoiadas pela formação do fundo. Portanto, essa dedução não configura benefício ao doador, mas representa um estímulo para que o interessado aloque recursos na formação do fundo”, diz o documento. As entidades ainda mencionam a existência de um acórdão do Tribunal de Contas da União (TCU), segundo o qual a isenção tributária que beneficia a administração pública não se caracteriza como renúncia fiscal propriamente dita.
Para Toneto Júnior, a tarefa de tornar os fundos rentáveis será mais árdua sem os incentivos tributários. “Para que seus rendimentos sejam robustos, um fundo patrimonial depende de aportes financeiros oriundos de grandes doações”, diz. Nos Estados Unidos e em países da Europa, como o Reino Unido, afirma, é comum que empresários e filantropos destinem parte de seu patrimônio à pesquisa na forma de doações a universidades ou instituições científicas, ou mesmo na criação de fundações que administram grandes dotações. Nesses países, onde a tradição do mecenato é forte, a tributação de altas taxas de impostos sobre heranças, que atingem grandes patrimônios, também estimula a filantropia. Nos Estados Unidos, universidades de prestígio complementam seus orçamentos com recursos provenientes de fundos patrimoniais. A Universidade Harvard, por exemplo, foi a primeira instituição de ensino e pesquisa dos Estados Unidos a criar um fundo patrimonial, em 1643 (ver Pesquisa FAPESP nº 219), cujos rendimentos são investidos em projetos científicos, infraestrutura e bolsas. Em 2017, 74% do financiamento do Museu de Zoologia Comparada (MCZ) de Harvard originou-se de fundos dessa natureza. “No Brasil, além da falta de uma cultura de doações, não existem incentivos fiscais a doadores”, afirma Toneto Júnior.
Embora possa ter menos capacidade de atrair doadores, a lei oferece atributos relevantes, como mecanismos legais que melhoram a gestão dos fundos patrimoniais, afirma a advogada Priscila Pasqualin, uma das especialistas consultadas pelo Congresso Nacional na elaboração da lei enviada para a sanção presidencial. “Tal como foi aprovada, a legislação pode atrair contribuições privadas ao estabelecer salvaguardas para os doadores, como impedir que os montantes doados sejam destinados a finalidades distintas das previstas nos acordos firmados entre as instituições beneficiadas e o doador”, explica Pasqualin. “Por exemplo, se a missão do fundo é apenas apoiar projetos de pesquisa, os recursos não poderão ser utilizados para cobrir gastos com reformas”, diz a advogada, ressaltando que essa determinação pode estimular potenciais doadores a contribuir com projetos perenes, sem receio de que o propósito do fundo seja desvirtuado no futuro.
A Lei dos Fundos Patrimoniais teve origem na Medida Provisória 851, editada em 2018 logo após o incêndio que consumiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em setembro. Na ocasião, o então presidente Michel Temer disse que a iniciativa buscava auxiliar instituições de pesquisa com dificuldades de financiar suas atividades e afirmou que a medida garantiria um arcabouço legal para a captação de recursos privados. Até então, tramitavam no Congresso seis projetos de lei que tratavam de fundos endowment, embora não de maneira ampla, beneficiando somente alguns setores. Apenas um deles, já aprovado no Senado, buscava regulamentar a gestão de doações a universidades (ver Pesquisa FAPESP nº 219 e nº 261).
“Apesar dos vetos aos incentivos fiscais, a lei têm pontos positivos. Um deles é que ela permite a criação de fundos patrimoniais em diversos setores, como ciência, educação, saúde e cultura”, avalia Pasqualin. Outro aspecto importante, na avaliação dela, é a exigência de que as instituições beneficiadas por fundos terão de ser amparadas por duas novas figuras jurídicas: a organização gestora, responsável por captar e gerir as doações, e a organização executora, incumbida de aplicar os recursos. “A norma aprovada segue a tendência de outros países, onde os fundos endowments contam com estruturas separadas e responsáveis por funções diferentes, como captar recursos e executar projetos”, explica a advogada. As organizações gestoras, que poderão ser constituídas como fundações sem fins lucrativos, serão encarregadas de publicar demonstrações financeiras e de gestão anualmente, além de adotar auditorias internas. Para fundos com mais de R$ 20 milhões, as auditorias serão feitas por órgãos independentes.
O governo, no entanto, vetou um artigo que permitiria que fundações de apoio de universidades e demais centros de ensino e pesquisa fossem equiparados às organizações gestoras. Para o governo, essa permissão “comprometeria a segregação de funções”, além de trazer prejuízos à credibilidade do fundo, “uma vez que poderia comprometer instrumentos importantes para a fiscalização, prestação de contas e transparência da gestão de doações”. Para Fernando Peregrino, presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies), a justificativa do governo federal “é pura retórica para excluir as fundações de apoio”. “É evidente que as fundações poderiam gerir fundos patrimoniais, uma vez que já temos expertise e políticas de controle junto às universidades públicas”, argumenta. A lei, contudo, não proíbe que as 94 fundações de apoio a universidades existentes hoje no país sejam gestoras de fundos patrimoniais, esclarece Pasqualin. “Caso uma fundação decida gerir um fundo, ela não estará na ilegalidade, mas não será considerada uma organização gestora nos termos da lei”, diz a advogada.