A Feira Brasileira de Ciências e Engenharia (Febrace) chegou à sua 17ª edição com a maturidade de um evento centenário. Realizada na última semana, de 19 a 21 de março na Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista, a Feira reuniu mais de 330 projetos, apresentados por cerca de 750 estudantes dos ensinos fundamental, médio e técnico de todo o País. Nesses quase vinte anos de realização, a iniciativa fomenta o imenso e crescente potencial científico dos jovens do País, e, mais que isso, demonstra o quanto projetos como esse despertam nos estudantes não apenas o senso de empreendedorismo, mas, principalmente, a vontade de usar o conhecimento para solucionar problemas de seu ambiente.
“A ideia da Febrace é que ela possa irradiar as boas práticas”, destaca a coordenadora-geral do evento, Roseli de Deus Lopes. “O objetivo é fazer com que esses estudantes percebam o potencial que têm para serem cientistas, tecnologistas, engenheiros. Mostrar que eles podem colocar o conhecimento em prática para resolverem problemas”, acrescenta.
Segundo Lopes, alguns projetos estão indo tão longe, que nas últimas edições, a organização do evento também começou a se preocupar em discutir a questão da propriedade intelectual. “Observamos a cada ano a qualidade crescente dos trabalhos. Vemos também um aumento de participantes fazendo pedidos de patentes. Queremos fazer uma pesquisa sistematizada sobre esse assunto. Isso terá certamente impacto dentro dos ambientes universitários”, diz.
Nessa edição, mais de 72 mil estudantes de 27 unidades da Federação, que desenvolveram projetos de pesquisa científica e tecnológica durante um ano inteiro, submeteram trabalhos à Febrace, diretamente ou por meio de uma das 116 feiras afiliadas. É uma iniciativa que envolve também a formação continuada de professores, uma vez que são eles os responsáveis por orientar os projetos dos estudantes. Para auxiliar esses profissionais, Lopes conta que a homepage da Febrace disponibiliza materiais de treinamento e apoio, mas a participação na mostra é o grande momento de trocar experiências e afinar o conhecimento. “A Febrace é prova de que é possível fazer verdadeiras transformações. Os professores não precisam ter experiência para orientar projetos, mas precisam começar, aprender com erros. Isso aqui é uma verdadeira formação continuada. Eles trocam experiências, se articulam com outros professores, com pesquisadores”, comenta Lopes, que é também diretora da SBPC.
A coordenadora-geral do evento conta ainda que nesta edição a mostra de finalistas foi realizada pela primeira vez no Centro de Inovação da USP, um prédio que ainda não foi inaugurado. “Estamos fazendo uma pré-estreia já com um valor simbólico importante. Esses jovens que estão aqui são inventores, descobridores, são eles que vão gerar inovação num futuro muito próximo.”
Ivo Leite Filho, coordenador-geral de Popularização da Ciência, da Assessoria Especial de Assuntos Institucionais (AEAI), do MCTIC, que há anos promove participação de estudantes e professores do Mato Grosso do Sul na Febrace, aponta para a importância de inserir os jovens no processo de desenvolvimento científico do País e dar a eles condições de se apropriarem do conhecimento e se verem como atores de suas próprias ações. “A ciência perde quando não inclui os jovens. A Febrace encanta porque os jovens aqui podem dar sua contribuição do jeito deles. Eles se sentem na possibilidade de transformar o mundo com suas próprias ferramentas. É um poder de mudança que ninguém tira, que é o conhecimento”, declarou.
Sustentabilidade
Letícia da Rocha e Gabriel Mota, de Campinas (SP), apresentaram na Feira o projeto “Rice Energy”, cujo objetivo, como eles próprios explicam, é gerar energia a partir da casca de arroz. “A casca é descartada no processo de industrialização, muitas vezes jogada em aterros sanitários, liberando gás metano. Essa casca tem alto poder calorífico e pode ser usada em produção de energia em termelétricas. Mas essa queima tem suas desvantagens, uma delas é o grande volume de cinzas”, explica Letícia. “Nós observamos que 91% das cinzas da casca queimada é composta de óxido de silício, que tem diversas aplicações, como a produção de concreto de alta resistência, ou de sabão abrasivo para clarear manchas da pele e também para a fabricação de canudos biodegradáveis, que degradam em apenas um dia”, completa Gabriel. Para eles, participar da Febrace é uma oportunidade para compartilhar seus próprios trabalhos, mas, também, para conhecer outros projetos feitos por jovens como eles.
Wictoria dos Santos veio de Maceió (AL), para apresentar, com outros dois colegas, o projeto “Acusticoco”. “É projeto para desenvolver placas de fibra de coco para diminuir o barulho dentro da sala de aula”, conta. Segundo ela, a ideia partiu de uma professora, que estava incomodada com o excesso de ruídos das salas de aulas. Ela então colocou aos alunos o desafio: quem se interessaria em fazer pesquisas para solucionar esse problema? “Foi bem legal participar desse projeto. Aprendi coisas novas e tive a oportunidade de participar de feiras de ciências, como esta. Descobri que é trabalhoso ser cientista, mas é muito legal”, comemora.
Outro material sustentável que teve destaque na Febrace foi um biopolímero enriquecido com fibra bananeira, uma alternativa ao plástico, que é um polímero sintético altamente poluente. Quem desenvolveu essa ideia foi Gean de Oliveira da Silva, de Arapongas (PR). “Sempre tive vontade de criar um material para ser usado em alternativa aos plásticos. E pensei que poderia fazer isso identificando uma matéria-prima que existisse em abundância em minha comunidade. O meu bioplástico tem o potencial de resolver os problemas causados pelos plásticos na atualidade e ainda é um material viável, de baixo custo e de fonte renovável”, diz o estudante. Gean conta que ser cientista é um sonho que nutre desde criança. “Através da Febrace, tive a chance de conhecer a pesquisa ainda no ensino médio. Eu pretendo agora continuar aprimorando meu projeto e, futuramente, conseguir o apoio de uma indústria para poder trazer essa ideia para a vida de todos”.
Impacto social
Em uma aula de educação física em uma escola de Caxias do Sul (RS), surgiu uma discussão sobre o caso da atleta Joanna Maranhão, que revelou em 2008 que havia sido abusada na infância pelo seu treinador. O assunto levou algumas estudantes a quererem compreender melhor o quanto esta história poderia ter se repetido entre jovens esportistas da sua região. “Começamos a estudar o assunto, e isso nos levou a pesquisar mais e mais até desenvolver o projeto sobre violência sexual no esporte”, contam Luiza Polesso, Bárbara Sponga e Luiza Vieira. “Descobrimos que o abuso e o assédio no esporte é muito subnotificado. Estima-se que apenas cerca de 7% dos casos são denunciados”, observa Luiza. As estudantes analisaram artigos e estatísticas disponíveis, depois formularam e aplicaram um questionário para cerca de 200 pessoas, entre professores alunos de institutos e escolas da rede pública de Caxias do Sul, Viamão e Bento Gonçalves.
“Essa pesquisa nos fez amadurecer muito. Enfrentamos muitas dificuldades, pois nosso assunto começou muito focado no esporte, mas, depois, chegamos à conclusão de que as aulas de educação sexual são importantes para que os estudantes tenham consciência do que é assédio”, destacam. Elas contam que muitos dos entrevistados responderam “talvez” quando questionados se já haviam sofrido algum tipo de assédio ou abuso no esporte ou fora dele. “Observamos uma falta de compreensão e orientação sobre como falar sobre isso e identificar os casos. Além disso, a maioria considerou muito importante as aulas de educação sexual. Segundo relataram, eles tiveram um contato com o assunto muito mais relacionado à parte biológica da reprodução, sobre doenças sexualmente transmissíveis, sobre gravidez, mas não tiveram pessoas que os orientasse sobre questões de gênero e sobre como identificar uma assédio ou abuso”, comentam.
Notícias de violência sexual contra mulheres no campus do Instituto Federal do Mato Grosso do Sul (IFMS), em Campo Grande, levou um grupo de alunos a buscar alguma forma de proteger as colegas. Foi assim que Maria Paula Santos, Rhanna de Souza e Luan Moreira chegaram ao projeto do aplicativo para celular “SOS Mulher”. “É um aplicativo desenvolvido para acionar as autoridades a partir de uma palavra-chave. A pessoa instala o aplicativo no celular, preenche um formulário e cadastra a palavra-chave. Em uma situação de risco, mesmo com o celular bloqueado e sem sinal de internet, quando a pessoa diz essa palavra, será encaminhada uma mensagem de texto para a polícia, com a localização do usuário e os dados pessoais. Só precisa ter bateria no telefone e rede de celular ativa no local”, descreve Luan.
Para os estudantes, desenvolver o projeto teve grande impacto do percurso acadêmico deles e na vida. “De um rascunho, chegamos a um produto que tem impacto social. A gente espera que esse projeto realmente vá para frente, pois os casos que ouvimos eram pesados. É uma realidade que qualquer uma de nós pode sofrer. É importante que a gente possa se sentir segura”, diz Ana Paula. Segundo ela, falta apenas um investidor interessado em patrocinar o projeto para que eles possam concluir o aplicativo e disponibilizá-lo aos usuários interessados.
Um caso de melanoma cutâneo na família levou as amigas Eduarda Jacobs e Helena Metz de Souza, de Canoas (RS). “Pesquisando, descobrimos que poderíamos resolver esse problema”, conta Eduarda. Seu avô faleceu em 2007, três após receber um diagnóstico tardio da doença. No caso de Helena, foi um tio que foi diagnosticado. “Desenvolvemos uma nanocápsula, contendo crisina, um fármaco natural, para melhorar o tratamento do melanoma”, contam as estudantes. Elas conseguiram testar as nanocápsulas, incorporadas em hidrogel de quitosana, em células saudáveis. “Observamos que nanocapsulando, podemos usar uma substância natural e obter efeitos semelhantes a uma substância sintética, mas que, por ser natural, não atingiu células saudáveis.” Elas contam que a próxima etapa do projeto é realizar testes em células cancerígenas. “Queremos resolver um problema que afeta muita gente.”
Inclusão
Eduardo da Paz Rodrigues desenvolveu um quarto automatizado inteligente por comando de voz ou movimentos, o “T-Stark”. “Desenvolvi uma cadeira de rodas, com quatro tipos de movimentos – andar, voltar, girar esquerda ou direita. Todos os comandos são enviados por voz, por meio de um aplicativo, para uma central que processa a informação e executa o movimento. O objetivo é facilitar a vida de pessoas com tetraplegia ou restrições de movimentos “, descreve. “Eu queria usar a tecnologia para desenvolver algo nessa área de acessibilidade, que merece mais atenção. Cheguei a um projeto barato, que pode ajudar muitas pessoas”, conta Eduardo. Todo o projeto, segundo ele, custa por volta de R$350, 00.
Os jovens cientistas da Febrace também têm os olhos atentos para a inclusão nas artes. Foi com essa sensível percepção que Bruno Matos e Henrique Backes desenvolveram o projeto “One Guitar”, uma tecnologia assistiva de auxílio rítmico do violão para pessoas sem um dos membros superiores. “A ideia surgiu porque vimos que muitos projetos de acessibilidade são voltados para necessidades de mobilidade das pessoas e poucos pensam no lazer delas”, explica Bruno. Os estudantes desenvolveram um dispositivo eletromecânico que produz os ritmos do violão. Uma interface de controle permite ao usuário interagir com o sistema e comandar o dispositivo, permitindo a reprodução de ritmos e também auxiliando no aprendizado do instrumento. “Participar de uma feira assim faz valer todo o esforço que tivemos. Recebemos aqui dicas muito importantes que nos ajudará a aprimorar o nosso trabalho”, comenta Henrique.
Fator humano
Um Comitê de Avaliadores composto por mais de duas centenas de professores universitários e especialistas voluntários fica com a dura tarefa de julgar os trabalhos e ajudar a escolher os vencedores. Os melhores projetos, divididos em diversas categorias, ganham troféus, medalhas, bolsas do CNPq e estágios. São cerca de 300 prêmios e oportunidades no Brasil e no exterior. Uma dessas oportunidades é representar o Brasil na Feira Internacional de Ciências e Engenharia da Intel (Intel ISEF), que será realizada de 12 a 17 de maio, em Phoenix, nos EUA.
Ricardo Caparrós é diretor de escola e avaliador da Febrace há mais de dez anos. A cada ano, ele observa um aumento significativo no grau de complexidade dos projetos apresentados. Segundo ele, isto é um sinal que as escolas precisam estar atentas. “A escola precisa oportunizar espaços dentro de seu currículo, promover o desenvolvimento do pensamento científico. É necessário permitir que os alunos deem vazão a toda essa criatividade, esse potencial. Isso envolve formação de professores, envolve buscar caminhos para efetivar esse tipo de projeto”, analisa.
Avaliadora há anos e professora orientadora de alunos participantes em outras edições, Marisa Cavalcante, professora da PUC-SP e Ufam, em Manaus, conhece os vários lados da Febrace. Ela também ressalta o gradual avanço do nível de qualidade dos projetos, não apenas com relação ao produto, mas a capacidade de investigação científica dos jovens e a consciência deles sobre o valor e o impacto de seus projetos.
“Eles chegam aqui com uma visão empreendedora e uma preocupação com a sustentabilidade, com o outro. É muito interessante não só do ponto o de vista científico, mas pelo fator humano. Esses meninos e meninas estão dando um grande exemplo para toda a sociedade, de como se preocupar com o outro, de como construir conhecimento para atender às necessidades do outro, da comunidade. Todos os projetos têm esse viés”, destaca.
Veja a lista de premiados na Febrace 2019 nos links: Parte 1 | Parte 2.
Daniela Klebis – Jornal da Ciência