Kadakawali é seu nome de batismo no povo indígena Baniwa – conta que para sair ou entrar em sua aldeia, em São Gabriel da Cachoeira (AM), é preciso estar de canoa ou avião. Foi necessário vencer milhares de quilômetros fluviais e terrenos para cursar Linguística na Universidade de Brasília (UnB).
“Fui o primeiro indígena na pós-graduação da UnB, e um dos primeiros a participar de um processo seletivo voltado para minha etnia”, relata. Finalizando hoje um doutorado na mesma instituição, Edilson faz parte de um corpo de 130 pesquisadores indígenas nas mais diversas áreas do conhecimento, como antropologia e engenharia florestal.
Entre o fim de abril e o começo de maio, o Ministério da Educação (MEC) anunciou cortes nas universidades federais que afetarão a vida de Edilson, seus companheiros de curso e toda comunidade acadêmica brasileira: 30% do orçamento das universidades públicas do país estão bloqueados.
Só na UnB, esse valor representa R$48,5 milhões de reais, impactando infraestrutura, concessão de bolsas e andamento de pesquisas científicas. Em outras universidades, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o corte representa a paralisação das atividades em breve.
Para Roseli de Deus Lopes, diretora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), corte explícita e condiz com uma situação que, antes mesmo da contingência, já era de franco decrescimento:
“É a pior situação orçamentária dos últimos 13 anos. Em cenários de crise, o caminho que países desenvolvidos tomam para recuperar seu quadro econômico é investir fortemente em ciência, tecnologia e inovação. Nós estamos indo na contramão”.
Recentemente, a Alemanha anunciou que injetará mais dois bilhões de euros por ano em ciência. No Brasil, desde 2014 o orçamento tem diminuído, fechando em 2018 com R$5,8 bilhões para universidades e R$3,1 bilhões para institutos federais.
“Na falta de dinheiro, é preciso fazer reengenharia de gastos, mas com base em estudos qualificados. Ciência tinha que ser prioridade, porque é ela que dá musculatura para um país em um mundo cada vez mais competitivo. O único caminho para nossa economia ser mais produtiva e gerar valor agregado é investir nela”, reflete Roseli. “Não podemos, com medidas atropeladas, jogar fora anos de planejamento, investimento e trabalho intenso para formar um sistema nacional de ensino e de pesquisa científica e tecnológica.”.
O papel social das universidades
Edilson desenvolve um doutorado de pesquisa na língua nheengatú, uma das mais faladas na bacia amazônica. A esperança é incidir em políticas públicas de preservação da língua e cultura de sua comunidade.
“Meu objetivo não é somente pessoal, é também da comunidade. A comunidade permitiu que eu estivesse na universidade para estudar e depois voltar. Esse corte não está afetando apenas os alunos, mas os povos que estão na base esperando por nós”.
Para Marcio Tascheto, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF) e da Universidade Franciscana (UFN), a função social da universidade ainda não é plenamente reconhecida pela sociedade:
“A universidade tem um papel central no desenvolvimento e enfrentamento das grandes questões da sociedade brasileira, e especificamente em cada território. Ela não é só lugar de acompanhar tendências mundiais e nacionais, mas também de criar contra tendências, alternativas, soluções. E isso sempre aconteceu pela trajetória de pesquisa.”
Cerca de 95% das pesquisas científicas brasileiras são criadas nas universidades públicas. É nelas também que cursos de extensão – atividades destinadas a interação da instituição com seu entorno – provocam e alteram políticas públicas. Na UPF, por exemplo, foi o encontro entre universidade e governo que possibilitou programas de melhora de mobilidade urbana ou formação de professores das redes municipais e estaduais.
O Brasil ocupa o 13º lugar em um ranking de 190 países na produção científica global em áreas como agricultura, medicina e saúde, segundo estudo da base de dados Web of Science, o que para Roseli, demonstra a potência do corpo científico brasileiro na produção de conhecimento que impacte positivamente o país.
“Mas com a redução de investimentos nas universidades, as pessoas ficam desmotivadas, acontece uma fuga de cérebros, desperdício de talento, de infraestrutura e de pessoal qualificado”, alerta a diretora.
A universidade que forma os formadores
Edilson entrou na universidade para poder exercer a profissão de educador – para poder lecionar nas escolas indígenas, é necessário um diploma universitário. Em contato com os estudos em linguística indígena, a vocação ao professorado apareceu mais forte. Hoje, é um dos educadores do Instituto Federal do Amazonas (IFAM).
“Os acadêmicos indígenas (graduação e pós-graduação), nas suas atividades de investigações, são pesquisadores de suas próprias culturas e línguas. Com isso, as pesquisas com e sobre as temáticas indígenas começam ter mais vida, pois é o indígena conhecedor na e da sua cultura, língua e mitologia”, comenta o Baniwa, que também trabalha na elaboração de um dicionário nheengatu.
Para justificar a contingência, o MEC ressaltou que serão priorizados gastos na educação básica – embora a pasta também tenha sofrido diminuição de verba. Marcio, entretanto, relembra onde acontece a formação de educadores responsáveis pelo nível básico:
“A universidade tem papel fundamental na educação básica: ela forma professores e atende sua formação continuada. Não é o MEC que faz as formações ou quem as prepara junto aos municípios, são os centros de pesquisa. É uma contradição: não é apostando em educação básica e desconstruindo ensino superior que a gente consegue dar conta dos nossos déficits.”
Um deserto intelectual de ponta a ponta, desde uma educação básica defasada até alunos que crescem e se deparam com um ensino superior esvaziado, é também o que deixa Roseli e a comunidade universitária em alerta:
“O papel da universidade na formação inicial e continuada é gigante, pois é ela que prepara os educadores em serviço para os desafios de hoje e para que eles consigam levar as evidências e pesquisas para dentro de suas escolas na forma de práticas pedagógicas inovadoras”.
Universidades no Brasil, no exterior, pesquisadores estudantes têm se articulado para protestar contra as medidas governamentais. Está marcada para o dia 15 de maio uma mobilização geral dentro de espaços acadêmicos pela educação pública de qualidade.
Edilson irá participar delas, mas não esconde sua preocupação: “É muito difícil. São os meus sonhos em jogo, mas também os da minha comunidade. E eu vejo que o próprio governo está acabando com o sonho, desejo e objetivo. Com essa nova política pública, acontecerá uma matança intelectual do nosso povo, que é tão cruel quanto à matança física à que já estão submetidos os povos indígenas”.