Nos últimos 45 anos, o Brasil viveu o mais longo e exitoso período de construção democrática de sua história. Dois momentos recentes foram cruciais para criar o cenário de consolidação democrática: o plano de estabilização da moeda, conduzido pelo governo Fernando Henrique Cardoso; e o programa de redução de desigualdades sociais e da pobreza, alavancado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Nesses eventos, houve uma importante interação entre Poder Executivo e Poder Legislativo, as duas esferas eleitas, dai a importância desses episódios como marcos da harmonia típica de um processo de consolidação democrática. No entanto, esse período acabou e a deterioração do cenário tem sido veloz. Como um pêndulo, o ambiente político tem oscilado rapidamente para o outro extremo, onde as garantias democráticas estão sendo perdidas.
Este é o resumo do diagnóstico feito pelo cientista político Leonardo Avritzer, que analisou “A crise da democracia no Brasil” em conferência nessa quarta-feira, 24, no terceiro dia de atividades da 71a Reunião Anual da SBPC, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Segundo Avritzer, é importante compreender que a democracia brasileira não foi um fracasso. Mas que sempre existiu dentro das próprias instituições do sistema, alavancas antidemocráticas, que agora têm sido colocadas em movimento. “O que nós percebemos é que a regressão foi rápida demais. A eleição de (Jair) Bolsonaro expressa essa crise da democracia e o processo de degradação institucional por dentro”, analisa o cientista.
Ele frisa que o atual presidente da República em diversas vezes expressou pouco apreço pelos mecanismos de representação democrática e é nesse sentido que se torna um “símbolo” dessa inversão de rota. “As próprias pessoas que ocupam posições centrais de poder, questionam o funcionamento do sistema democrático”, como quando Bolsonaro, ao longo da campanha à presidência expressou mais de uma vez sua convicção de que o sistema eleitoral era fraudulento.
Para Avritzer, cientistas político, sociólogos e antropólogos precisam estudar esses novos movimentos para compreender melhor a velocidade de inversão da trilha democrática, mas três fatores sempre se mostraram como mecanismos de ruptura democrática latentes dentro do próprio arcabouço de consolidação do sistema nas últimas décadas: o dispositivo do impeachment, a atuação dos militares e do Poder Judiciário.
Gatilhos antidemocráticos
O dispositivo legal do impeachment, naturalizado no sistema brasileiro, apresenta-se para Avritzer como uma das grandes ferramentas antidemocráticas presentes do seio do processo de consolidação da estrutura política da pós-ditadura. Poucos se atentam para o fato de a chamada Lei do Impeachment – na verdade, a Lei dos crimes de responsabilidade – ser anterior à Constituição de 1988, que não a revogou. Editada em 1950, a Lei nº 1079 assinada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra segue basicamente inalterada nesses quase 70 anos, tendo sido acrescida em pouco dispositivos uma única vez, em 2000. “E na nova República, só não sofreram processos de impeachment os presidentes Itamar Franco e Lula”, lembrou o professor, demonstrando o nível de banalização do uso do dispositivo para buscar a retirada de governantes eleitos.
O segundo mecanismo latente de ruptura democrática está exposto no Art. 142 da Constituição Federal, que estabelece que as Forças Armadas podem intervir para “garantia dos poderes constitucionais”, por iniciativa de qualquer um dos três Poderes. Segundo Avritzer, essa brecha na Carta Magna não foi vista como risco na época, pois havia um entendimento após a ditadura de que os militares deviam se manter afastados da política. “Acontece que, em um certo momento entre 2016 e 2018, os militares voltaram a falar de política. E hoje já somam 110 militares em cargos de alto escalão no governo federal. O papel dos militares na política brasileira continua ativo”, alertou.
A terceira brecha no processo de consolidação democrática trata-se da forma com que se estrutura e atua o Poder Judiciário. “O Brasil tem um dos poderes judiciários mais oligárquicos do mundo e que nunca se submeteu de fato ao sistema democrático”, afirmou. “Temos um Poder Judiciário que, não só não se submete às forças democráticas como ainda tem um enorme poder de revisão e modificação das leis.” Os reflexos desse poder acima da democracia é que o sistema judiciário brasileiro sequer dispõe de mecanismos concretos de punição de desvios. Tanto é assim que a punição máxima a um magistrado é o afastamento do cargo, mantendo a remuneração.
Prestar atenção na existência dessas fissuras históricas e combinar os novos acontecimentos com o passado, como faz o cientista Avritzer, é muito importante para entender o atual cenário político brasileiro, como destacou o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e antropólogo Otávio Velho, que coordenou a conferência. Ainda que a deterioração seja veloz e perceptível, Leonardo Avritzer se mantém otimista que é possível mover o pêndulo para o outro extremo e recuperar o processo democrático. Mas, em sua visão, é preciso não apenas mecanismos institucionais, mas também de mobilização civil – recomendação dada diretamente às entidades de representação civil sob ataque no atual governo – para que as estruturas democráticas possam ser, de fato, reestabelecidas.
Mariana Mazza – Jornal da Ciência