São Paulo, 13 de outubro de 2014.
SBPC-104/Dir.
Exmo. Senhor Deputado
WELLINGTON FAGUNDES
Câmara dos Deputados
Senhor(a) Deputado(a),
No último dia 24 de junho, o Poder Executivo encaminhou à Câmara dos Deputados o PL
7735/2014 em regime de urgência constitucional, que “Regulamenta o inciso II do § 1o e o § 4o do art.
225 da Constituição; os arts. 1, 8, j, 10, c, 15 e 16, §§ 3 e 4 da Convenção sobre Diversidade Biológica,
promulgada pelo Decreto no 2.519, de 16 de março de 1998; dispõe sobre o acesso ao patrimônio
genético; sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado; sobre a repartição de
benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade; e dá outras providências”.
Como é de conhecimento dos senhores, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC) representa 113 sociedades científicas de diferentes áreas do conhecimento, e por entender
que este é um assunto da maior importância para o país, solicitou à Presidente da República que
retirasse o regime de urgência de modo que permita a efetiva participação da sociedade brasileira na
construção deste relevante marco legal.
A regulamentação deste tema no Brasil faz parte do compromisso assumido pelo país, ao
ratificar a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), de internalizar seus objetivos, princípios e
diretrizes por meio de legislações nacionais específicas.
A primeira tentativa de regulamentar este tema no Brasil foi uma iniciativa da então
Senadora Marina Silva por meio do PLS 306/1995. Desde esta época, diferentes atores da sociedade
têm participado do processo de construção de um marco legal sobre acesso a recursos genéticos
para o país. Em 2000, no entanto, para responder uma denúncia dos termos do contrato entre uma
instituição nacional e uma multinacional farmacêutica, noticiado amplamente pela mídia, o governo
federal editou em 30 de julho a Medida Provisória 2052, que após sucessivas reedições, vigora até
hoje como MP 2186-16/2001. No início, esta legislação burocratizou a pesquisa científica e o
desenvolvimento tecnológico, dificultando a geração de conhecimento e o aproveitamento
sustentável da imensa biodiversidade brasileira. Nos últimos 2 anos, o governo federal estabeleceu
um canal direto de negociação com um grupo de empresas e associações empresariais, e não
envolveu diretamente nesta discussão a comunidade científica (apesar de que houve participação do
MCTI e do CNPq), resultando na proposta que hoje tramita na Câmara como PL 7735/2014.
Tampouco foram devidamente consultados os povos indígenas e comunidades tradicionais, em
desrespeito às obrigações assumidas pelo Brasil ao ratificar a Convenção 169 da OIT.
Após anos de experiência na implementação da MP, o processo de autorização de acesso ao
patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais melhorou, mas ainda está longe do que o país
necessita para utilizar efetivamente sua rica biodiversidade. Neste sentido, é consenso de que o PL
7735/2014 trouxe avanços significativos, mas que, antes de ser aprovado, necessita de alterações
para se alcançar o consenso entre os diferentes segmentos da sociedade impactados por esta
legislação, e que isto só será alcançado se houver oportunidades de debates para que se busque
dirimir ainda as discordâncias evidentes.
Um dos grandes avanços da nova proposta, pleito antigo da SBPC, foi que para o acesso ao
patrimônio genético e ao conhecimento tradicional para fins de pesquisa e desenvolvimento
tecnológico só haverá a necessidade de cadastramento eletrônico e não mais de solicitar ao CGen
(ou Ibama ou CNPq ou Iphan) autorização prévia para a realização do acesso, o que desburocratiza e
incentiva a geração de conhecimento sobre nossa biodiversidade.
No entanto, há algumas questões que são motivos de muita preocupação, e que a nosso ver,
precisam ser aperfeiçoadas. São elas:
1. Recursos Genéticos para Alimentação e Agropecuária
As atividades de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado para
alimentação e agropecuária, seja para fins de pesquisa científica, bioprospecção ou desenvolvimento
tecnológico, não são reguladas pelo PL 7735/2014, continuam a ser reguladas pela MP 2186-16/2001,
o que deixa, por exemplo, a pesquisa agrícola sob as velhas regras burocráticas. Além disto, cria uma
situação conflitante ao manter dois instrumentos legais, com regras diferentes, para o acesso e a
repartição de benefícios, tais como, a existência de um Conselho de Gestão do Patrimônio Genético
(CGen) com papéis diferentes conforme o tipo de uso dos recursos genéticos a serem acessados. No
entender da SBPC, a MP deve ser totalmente revogada. As atividades de acesso ao patrimônio
genético ou a conhecimento tradicional associado para alimentação e agricultura devem ser
reguladas em outro instrumento legal específico, que harmonize as regras da Convenção sobre
Diversidade Biológica (CDB) e o Tratado Internacional sobre Recursos Filogenéticos para a
Alimentação e para a Agricultura (TIRFFA), esse último vinculado à Organização das Nações Unidas
para Alimentação e Agricultura (FAO).
Ressalta-se que nos recursos genéticos para alimentação e agropecuária também podem
estar incluídas espécies nativas de peixes, plantas, sementes, muitas delas de importância regional e
para exportação. Além disso, deve-se considerar que diante das mudanças climáticas globais, há um
enorme esforço para encontrar novas espécies que possam ser cultivadas (criadas) em ambientes
mais quentes. Acrescente-se também que a diversidade biológica existente no ambiente natural é
uma salvaguarda para as espécies cultivadas e essa salvaguarda precisa ser conhecida. Assim, é
preciso uma legislação com regras claras e simples que permita o desenvolvimento da pesquisa
científica.
E por fim, não podemos perder de vista que o Protocolo de Nagoia sobre Acesso a Recursos
Genéticos e Repartição de Benefícios entrará em vigor em 12 de outubro deste ano, e que o Brasil
deverá, em algum momento, ratificar o mesmo, assumindo o compromisso de implementá-lo. E, em
relação aos recursos genéticos para alimentação e agricultura, o Protocolo reconhece a natureza
especial desses recursos e sua importância para a segurança alimentar e orienta os países Partes a
considerarem tais características em suas legislações nacionais,
2. Direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais sobre seus Conhecimentos
Tradicionais Associados
Os direitos dos povos indígenas e conhecimentos tradicionais quanto aos seus
conhecimentos tradicionais associados estão garantidos em vários dispositivos da Convenção sobre
Diversidade Biológica (CDB), em especial no Artigo 8(j) e na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), convenções essas ratificadas pelo Brasil.
Se por um lado o PL7735 reitera dispositivo dessas convenções que determina uma
repartição de benefícios de forma justa e equitativa e através da livre negociação entre detentores
de conhecimentos tradicionais e seus usuários em termos mutuamente acordados, ele fere esse
direito reiteradas vezes, por exemplo:
– No Art. 18, parágrafo 2o, o PL exclui da obrigação de repartir benefícios os fabricantes de produtos
intermediário e desenvolvedores de processos oriundos de acesso ao patrimônio genético ou ao
conhecimento tradicional associado ao longo da cadeia produtiva. Já em seu parágrafo 5o, isenta as
micro e pequenas empresas do dever de repartir benefícios, inclusive com os povos indígenas e
comunidades tradicionais titulares dos conhecimentos tradicionais, desconsiderando os direitos dos
povos/comunidades de decidir sobre a utilização dos conhecimentos tradicionais dos quais são
titulares e sobre a repartição de benefícios oriunda de tal utilização. Somente aos titulares de tais
conhecimentos caberiam a decisão de abrir mão da repartição de benefícios que a que têm direito.
Esse privilégio das micro e pequenas empresas não existe para outro tipo de transação.
– O PL estabelece que a escolha da modalidade (se monetária ou não monetária) de repartição de
benefícios decorrente da exploração econômica de produto acabado oriundo de acesso ao
patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado fica a critério do usuário (Art. 19 do PL).
– o PL estipula no seu artigo 20 que uma percentagem fixa de um por cento da receita líquida anual
obtida com a exploração econômica de produto acabado oriundo de acesso ao patrimônio genético.
Não há qualquer explicação ou justificativa lógica ou econômica para que se considere esse
percentual fixo, por sinal módico, como repartição “justa e equitativa” de benefícios. Além disso, não
cabe ao legislador estabelecer a priori a repartição de benefícios que deve resultar de negociação
livre entre as partes. No máximo, tendo em vista a situação de vulnerabilidade das comunidades
tradicionais e dos povos indígenas, estabelecer um percentual mínimo para a repartição de
benefícios.
– O PL prevê que a União pode estabelecer acordo setorial, visando garantir a competitividade do
setor contemplado, que permita reduzir o valor da repartição de benefícios monetária para até um
décimo por cento da receita liquida anual obtida com a exploração econômica do produto acabado
oriundo de acesso a patrimônio genético (Art. 21). E para subsidiar a celebração desse acordo, o PL
prevê que os órgãos oficiais de defesa dos direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais
poderão ser ouvidos. O projeto prevê assim a possibilidade de participação de povos/comunidades
por meio de órgãos oficiais de defesa dos mesmos e não prevê a participação direta do
povo/comunidade detentor do conhecimento tradicional que está em questão. Além disto, a
redução prevista ocorrerá nos benefícios a serem aferidos pelo povo indígena ou pela comunidade
tradicional, e portanto, os povos indígenas e/ou comunidade tradicional “deverão” participar e não
“poderão” participar.
Chama a atenção, por outro lado, o fato de que o projeto de lei considera como representante de
povo indígena ou de comunidade tradicional, órgãos oficiais de defesa de tais povos/comunidades.
Um exemplo consta do artigo do PL que, ao exigir o consentimento prévio informado do povo
indígena/comunidade tradicional para que haja o acesso ao conhecimento tradicional associado,
permite que comprovação desse consentimento prévio informado seja, dentre outras formas,
decorrente de parecer do órgão oficial competente. Há que ser garantido no marco legal brasileiro, a
participação direta dos detentores de conhecimentos tradicionais na aprovação e consentimento do
uso ou outra aplicação desses conhecimentos, bem como o direito de negar o acesso aos seus
conhecimentos tradicionais.
3. Participação da Sociedade na Gestão e Controle do acesso ao patrimônio genético e ao
conhecimento tradicional associado
O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) é composto atualmente por 19
representantes de órgãos e de entidades da Administração Pública Federal. A partir de 2003, o CGen
passou a contar com representantes da sociedade na qualidade de membro convidado permanente,
com direito a voz mas não a voto. Este fato sempre foi objeto de críticas de diversos segmentos da
sociedade afetados pela MP 2186-16/2001, sejam eles usuários ou provedores de patrimônio
genético ou de conhecimento tradicional associado, pois se defendia que o CGen deveria funcionar
como instância de mediação de interesses de modo que haja um efetivo controle social sobre
atuação do Conselho e sobre a gestão do patrimônio genético, bem de uso comum do povo, como
estabelecido pela Constituição brasileira.
A nova proposta do Executivo, o PL 7735/2014, também não garante a participação da
sociedade (representantes dos provedores de conhecimento tradicional associado e dos diferentes
usuários, tais como comunidade científica e empresas) no CGen. Propõe que sua composição e
funcionamento sejam objetos de regulamento. Como dito anteriormente, a participação no CGen é
uma demanda antiga de vários grupos sociais e por isto, deve constar no texto da lei, e não remetido
para um futuro regulamento.
Também é fundamental que haja a previsão da participação da sociedade civil na gestão do
FNRB (Fundo Nacional de Repartição de Benefícios) e do PNRB (Programa Nacional de Repartição de
Benefícios), já que o patrimônio genético é um “bem de uso comum do povo” e a União é apenas o
gestor do mesmo. Deve contar com a participação dos segmentos impactados (provedores e
usuários) por esta legislação na gestão e controle das atividades relacionadas ao acesso.
4. Prazo para Regularização
O PL estabelece que o prazo para o usuário reformular o pedido de autorização ou
regularização de que trata o art. 36 (por meio do cadastro, que será criado por regulamento) será de
um ano, contado da data de entrada em vigor desta Lei. Isso pode ser um problema, pois como o
cadastro será criado por regulamento, isto pode demorar muito tempo, até mesmo mais de 1 ano
após a entrada em vigor da lei, o que deixaria todos na irregularidade. O prazo deve contar a partir
da criação e funcionamento do cadastro.
Certos de que Vossas Excelências, na qualidade de representantes do povo brasileiro, irão
considerar nosso pleito, lembrando que a ciência brasileira tem importante papel na geração de
conhecimento sobre a biodiversidade brasileira e consequentemente em sua conservação e uso
sustentável, nos colocamos à disposição para maiores esclarecimentos.
Atenciosamente,
HELENA BONCIANI NADER