“A sociedade brasileira e a humanidade estão enfrentando desafios sem precedentes sociais, econômicos e ambientais. E não há nada que não possa contra atacar esses desafios senão a soberania da ciência.”
No dia 16 de agosto, para um auditório lotado na Universidade de São Paulo (USP), o físico e ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) Ricardo Galvão deu uma palestra de duas horas sobre a soberania da ciência e a importância da autonomia universitária.
Embora cientista de renome internacional, Galvão e o próprio INPE não eram tão conhecidos fora dos meios acadêmicos antes do último mês. Após uma série de embates públicos com Ricardo Salles, Ministro do Meio Ambiente, e com o presidente Jair Bolsonaro sobre o monitoramento do desmatamento da Amazônia – nos quais eles acusavam o INPE de manipular os dados – o pesquisador foi exonerado ao rebater as críticas do governo.
O imbróglio recente entre INPE e o poder executivo do país é metáfora para entender a relação entre sociedade e as ciências no Brasil: não há somente um desconhecimento público com relação a produção científica brasileira, mas também pouco investimento na nossa produção científica ou tecnológica.
Como o governo brasileiro olha para as ciências
Não são poucas as representações nos anais da história da difícil relação entre política e ciência. Em sua fala, Galvão trouxe algumas parábolas; a da médica Hipátia, cientista do século V em Alexandria que foi perseguida por seu gênero e sua produção disruptiva. Mais recentemente, a fuga de cérebros causada pela ditadura militar brasileira.
“Nós das instituições científicas sempre fomos atacados quando divulgamos o que os poderosos não querem ouvir. Mas o conhecimento científico não pertence à esquerda ou à direita. Sempre devemos lutar contra os assaltos, ataques à ciência independente de nossa ideologia partidária ou política. Temos que nos levantar e nos colocar à frente”, defendeu o físico.
O Brasil investe cerca de 1,5% do seu PIB (Produto Bruto Interno) em Ciências e Tecnologia – para se ter uma ideia, Ruanda, Japão e Coreia do Sul aplicam 3%. Faz dez anos que o investimento diminui progressivamente: hoje, o Brasil enfrenta um contingenciamento de 42% das despesas do ministério e um corte de verbas em universidades federais e no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
2019 inaugurou um novo e preocupante capítulo dessa relação. O presidente vigente toma grande parte das decisões sem acessar pesquisas – e sua cúpula até rechaça algumas, como as relacionadas às mudanças climáticas e sobre o uso de drogas. Bolsonaro já chegou até a alegar que “chega de estudiosos e especialistas”.
“A situação é grave. Não se pode banalizar o que se levou 50 anos para construir: universidades que hoje estão par a par com instituições internacionais”, alerta Roseli de Deus Lopes, diretora da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
A ciência brasileira ensimesmada
Ainda que haja aridez no financiamento científico, muito se tem produzido dentro das universidades brasileiras, cátedras de toda pesquisa básica e aplicada no Brasil. Foram nelas que se criou um gel de gengibre para tratar pés diabéticos; é brasileira a iniciativa de usar pele de tilápia no tratamento de queimaduras; e também a tecnologia de combate a uma praga do feijão.
Essas descobertas, entretanto, encontram pouca porosidade na mídia e na sociedade. Foi para tornar a ciência mais palatável e menos desacreditada que as cientistas Ana Bonassa e Laura de Freitas criaram o projeto Nunca Vi 1 Cientista. Em canais como Youtube e Instagram, elas falam de ciências de maneira descontraída, tirando dúvidas do público.
“Pegamos memes, assuntos e notícias, e partir daí explicamos os fenômenos com dados científicos”, explica Laura. “Não falamos sobre o que queremos que as pessoas saibam sobre ciência, e sim sobre o que elas já estão falando e debatendo, só que de uma forma científica.”
Se 90% dos jovens não conhece o nome de um cientista brasileiro – segundo pesquisa Percepção de C&T realizada pelo Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (Fiocruz) e da Casa de Oswaldo Cruz – para as duas pesquisadoras isso se dá porque cientistas ainda não encontraram jeitos de falar para além de seus próprios círculos, como explica Ana:
“A universidade ainda não conseguiu na maioria dos casos mostrar para o público o que ela faz. Isso tem muito a ver com a própria linguagem da comunicação científica. Parece que quando um cientista se encontra com outro um vocabulário rebuscado toma conta.”
Laura complementa que dentro da própria universidade há resistência, e que muitas vezes os cientistas não querem testar outras formas de comunicação. “Se a gente fica só com nossos cientistas, nossa panelinha, as pessoas não vão saber o que a gente faz. E se as pessoas não sabem o que a gente faz, elas não nos dão apoio. Se não nos dão apoio, as verbas são cortadas, como está acontecendo agora.”
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