Espaço de debates acadêmicos interdisciplinares, o Núcleo de Estudos Avançados do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) encerrou o ano com um painel sobre as políticas públicas nas áreas de ciência, tecnologia, inovação e educação. Com a participação de Soraya Smaili, reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); Ronald Shellard, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), e ldeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a sessão discutiu a situação das universidades, institutos de pesquisa e agências de fomento. O debate foi mediado por Renato Cordeiro, pesquisador do IOC e coordenador do Núcleo de Estudos.
No painel sobre ‘Ciência, tecnologia, inovação e educação: desmonte ou equívocos’, os palestrantes abordaram os cortes de orçamento e a carência de pessoal nas instituições de pesquisa. Considerando propostas como o Programa Future-se, do Ministério da Educação, e a possibilidade de fusão entre a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), os cientistas apontaram risco de retrocesso para a ciência, tecnologia e inovação no país.
“O orçamento das universidades federais foi liberado em outubro, mas o prejuízo do bloqueio foi enorme. Não poder fazer obras ou adquirir livros é brutal para um sistema de produção de conhecimento”, apontou Soraya. “A situação atual é dramática. Temos que recompor quadros e abordar muitos outros temas nos institutos de pesquisa para enfrentar os desafios tecnológicos”, declarou Shellard. “Desde 2014, vemos decréscimo nas verbas para ciência e tecnologia, e a previsão para 2020 está crítica. O orçamento brasileiro chega a R$ 2 trilhões. A sociedade deveria decidir o destino desse recurso”, destacou Ildeu. “Com esse cenário, vamos presenciar uma grande diáspora de jovens talentos, que migrarão para o exterior. Falta um projeto de nação para esse país, como tinham Anísio Teixeira e Paulo Freire”, afirmou Renato.
Defesa da autonomia universitária
A reitora da Unifesp defendeu a autonomia universitária e afirmou que é preciso derrubar mitos sobre o ensino superior no Brasil. Soraya lembrou que das 20 melhores universidades do país 18 são federais ou estaduais, de acordo com o Ranking Universitário Folha. Além disso, as instituições públicas respondem por mais de 95% da produção científica do Brasil, segundo o Web of Science. Ela citou ainda que a oferta de vagas cresceu 360%, de 109 mil para 393 mil, entre 2002 e 2017. A expansão foi acompanhada pela mudança no perfil dos estudantes: em 2018, 70% dos alunos tinham renda familiar per capita de 1,5 salários mínimos.
Em relação ao Programa Future-se, ela afirmou que dois terços das universidades federais rejeitaram a primeira versão do projeto, o que também ocorreu na Unifesp. Entre os principais problemas, a reitora citou o modelo de financiamento, por meio de fundos públicos, semipúblicos e privados; a mudança na gestão, executada por organizações sociais (OS), e a própria finalidade da proposta, que destaca o empreendedorismo, deixando de lado o projeto pedagógico. Após audiências públicas, criação de um grupo de estudo e avaliação do Conselho Universitário, a Unifesp passou a integrar a Frente por Um Outro Futuro, que propõe diretrizes alternativas ao programa.
“Defendemos a autonomia universitária, a gestão democrática e o financiamento público, com fundos que podem complementar, mas não ser a fonte do custeio”, enumerou Soraya. Ela acrescentou que mudanças na legislação são necessárias para avanços na gestão, com destaque para a aprovação da PEC 24/2019 e a revisão da Lei dos Fundos Patrimoniais. “Atualmente, os recursos arrecadados pelas universidades vão para a conta única da União e podem ser retidos pelo governo. Isso não estimula a universidade a gerir seu patrimônio e receber doações. Se tivermos essas mudanças, não precisamos do Future-se, temos a capacidade de fazer a gestão dos nossos recursos”, argumentou.
Desequilíbrio no tripé da inovação
Em 2009, 3,3 mil servidores trabalhavam em 12 centros de pesquisa federais do país. Dez anos depois, são 2,4 mil, incluindo quase 800 aptos para aposentadoria. “Se todos se aposentarem, ficaremos com 1,6 mil servidores, quase a metade de dez anos atrás”, alertou o diretor do CBPF, ressaltando a complementaridade entre as atividades dos centros de pesquisa e das universidades. “As universidades têm a missão de formar recursos humanos e realizam pesquisa livre. Os institutos têm como foco a pesquisa e o desenvolvimento e devem cumprir uma missão como instrumentos de Estado, abordando temas estratégicos”, resumiu.
Segundo o pesquisador, os sistemas de inovação dos países sustentam-se no tripé formado por universidades, institutos de pesquisa e empresas. Geralmente, no Brasil, destaca-se o baixo investimento privado em pesquisa e desenvolvimento. Porém, a carência de institutos também prejudica a inovação. “Em média, nos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), há dois pesquisadores em universidades para cada um em institutos de pesquisa. Hoje, no Brasil, a proporção é de 23 para um. Não há excesso de cientistas no país, mas a proporção nos institutos é ridícula”, apontou Shellard.
O pesquisador enfatizou que os recursos públicos são a principal fonte de financiamento da pesquisa científica nas universidades e nos institutos em todos os países, inclusive nas prestigiosas universidades privadas dos Estados Unidos. Ele ressaltou que o Brasil aplica apenas 0,9% do Produto Interno Bruto (PIB) em pesquisa e desenvolvimento. “Gastamos 1,7% do nosso PIB no sistema judiciário em contraste com menos de 0,5% nos países da OCDE. A crise traz oportunidade para refletir melhor sobre o que estamos fazendo”, ponderou.
Mobilização pela ciência
O presidente da SBPC chegou ao debate imediatamente após desembarcar da viagem à Brasília onde participou da reunião da Frente Parlamentar Mista de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação. Ildeu ressaltou que a proposta de orçamento para 2020 prevê redução de verbas para a Capes e o CNPq. Segundo ele, a articulação com parlamentares é fundamental e deve garantir os recursos que podem ser destinados por meio de emendas de deputados e senadores. No entanto, é difícil alterar o projeto enviado pelo Executivo. “O relator geral do orçamento no Congresso consulta o Ministério da Economia, que não nos concede audiência. A decisão fechada é uma grande restrição orçamentária”, afirmou.
O pesquisador considerou ilegal o contingenciamento de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que é composto, na maior parte, por recursos arrecadados de empresas para financiar atividades de pesquisa e inovação. “Neste ano, o governo contingenciou 90% do FNDCT para pagar dívida pública e fazer ajuste fiscal. Desde 2013, R$ 21 bilhões deixaram de ser investidos em ciência e tecnologia”, declarou Ildeu.
Sobre a possibilidade de fusão entre a Capes e o CNPq, o presidente da SBPC disse esperar que a comunidade científica seja ouvida pela comissão interministerial que vai avaliar a proposta. Se a participação for negada, ele defendeu a formação de uma comissão paralela para discutir a medida. O pesquisador concluiu dizendo que é preciso definir um projeto para o futuro do Brasil. “Temos capacidade impressionante em ciência e tecnologia, mas precisamos de um projeto de nação. Em breve, teremos o bicentenário da independência. Devemos aproveitar essa oportunidade para pensar o Brasil historicamente e propor construtivamente. A sociedade civil tem que fazer isso”, sugeriu.
Debate
A importância de pensar a ciência, tecnologia, inovação e educação no Brasil a partir de um projeto para o futuro do país foi um dos temas centrais do debate realizado após a palestra. O coordenador do Núcleo de Estudos sugeriu que ‘projeto brasileiro de nação’ seja tema principal da reunião anual da SBPC de 2021 e salientou a relevância da divulgação científica. “Precisamos estimular o jornalismo científico e aumentar a presença na mídia para que a sociedade tenha mais consciência sobre a importância das atividades de pesquisa”, afirmou Renato. A proposta de reflexão tendo em vista o bicentenário da Proclamação da República foi apoiada por José Paulo Gagliardi Leite, diretor do IOC. “Temos o ‘Livro Azul da 4ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Sustentável’ como ponto de partida”, apontou José Paulo.
Richard Stephan, professor do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ), defendeu a união dos cientistas de diferentes áreas. “Podemos nos unir em torno do documento que a Academia Brasileira de Ciências apresentou aos candidatos à Presidência em 2018”, opinou. Já Débora Foguel, professora do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da UFRJ (IBqM/UFRJ), chamou atenção para a relevância de incluir diferentes atores sociais no debate. “Um artigo na Science mostra que as patentes das empresas têm sempre dinheiro público por trás. Precisamos ter a voz dos empresários junto com a nossa”, declarou.
O papel das universidades, institutos de pesquisa e empresas no sistema de inovação foi enfatizado por Bruno Lourenço Diaz, diretor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da UFRJ (IBCCF/UFRJ). “A missão da universidade é formar pessoas, não é substituir as empresas na inovação. Temos mais pesquisadores nas instituições de ensino do que no mercado, mas não há excesso nas universidades e, sim, falta nas empresas”, ponderou. A autonomia universitária foi defendida por Luís Cláudio Muniz Pereira, pesquisador do Laboratório de Helmintos Parasitos de Vertebrados do IOC. “Sem autonomia universitária, não existe o livre pensar, que é fundamental para o avanço do conhecimento”, afirmou.
A Constituição Federal foi lembrada pelos palestrantes no encerramento do debate. “Nosso projeto de nação tem que partir da Constituição Cidadã de 1988. Não podemos perder o que já construímos”, declarou Soraya. “Temos aparato capaz de levar a ciência do Brasil ao protagonismo. Precisamos identificar os principais problemas e onde podemos ter mais sucesso”, acrescentou Shellard. “Se queremos um país que tenha desenvolvimento, melhorando as condições de vida das pessoas, precisamos pressionar os parlamentares a partir de suas bases”, completou Moreira.