No último dia do ano passado, a comunidade científica nacional foi surpreendida por uma portaria do Ministério da Educação (MEC), que limita o número de pesquisadores que podem viajar para eventos. Desde então, as associações científicas, lideradas pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), vêm se mobilizando pela revogação da medida.
No dia 23 de janeiro, elas enviaram uma carta ao ministro Abraham Weintraub, endossada por cerca de 60 outras associações científicas, na qual dizem que a Portaria 2.227, de 31 de dezembro de 2019, “inibe a interação entre os pesquisadores brasileiros e prejudica a internacionalização e o protagonismo da ciência e da tecnologia nacionais”, e, por isso, “urge revisá-la”.
A portaria dispõe sobre os procedimentos para afastamento (do cientista) da sede e do país e concessão de diárias e passagens em viagens nacionais e internacionais, a serviço, no âmbito do MEC. O foco maior da reclamação é o seu artigo 55, que diz: “A participação de servidores em feiras, fóruns, seminários, congressos, simpósios, grupos de trabalho e outros eventos será de, no máximo, dois representantes para eventos no país e um representante para eventos no exterior, por unidade, órgão singular ou entidade vinculada”.
“Somente em caráter excepcional e quando houver necessidade devidamente justificada, por meio de exposição de motivos dos dirigentes das unidades, o número de participantes poderá ser ampliado mediante autorização prévia e expressa do Secretário-Executivo”.
Procurado pela BBC Brasil, o MEC respondeu por meio de nota: “O Ministério da Educação esclarece que a Portaria 2227, de 31 de dezembro de 2019, não proíbe o deslocamento de servidores do MEC. A publicação prevê a possibilidade de ampliação da quantidade de participantes, em casos excepcionais. No momento, a portaria está sendo revisada e analisada para possíveis modificações, em atendimento à solicitação de pesquisadores, professores e reitores da universidade e institutos federais”.
Em sua carta, a associações científicas dizem “que a limitação de participação de, no máximo, dois servidores em eventos no país, e de um representante para os realizados no exterior, por unidade, órgão singular ou entidade vinculada, não se adequa à realidade do papel da universidade e das instituições de ensino, pesquisa, extensão, tecnológicas e de inovação no mundo globalizado”. Além disso, a Portaria “acarreta um risco iminente para missões bilaterais e grandes colaborações internacionais, nas quais a participação brasileira tem tido grande destaque”.
Cientistas de várias universidades federais ouvidos pela BBC Brasil também criticam a nova norma e alertam para os riscos dela para ciência nacional. “Me pergunto sobre qual a motivação desta portaria neste momento”, diz o biólogo Demétrio Luís Guadagnin, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Me parece se tratar de mera incompetência ou deliberada intenção de perturbar a vida universitária. Isso porque não houve nenhum debate que permitisse avaliar a motivação, discutir alternativas, avaliar ganhos e aperfeiçoar o sistema.”
André Luís Souza dos Santos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atribui a edição da Portaria 2.227 à “política de descrédito e desvalorização da Educação” do atual governo. “Nos faz crer que tal norma é mais um mecanismo de repressão e desqualificação do educador/pesquisador brasileiro”, diz.
“Fica clara a necessidade dos atuais governantes de desmontar a estrutura montada nos últimos anos, que gerou tanto ganho e evolução no binômio educação-ciência. Esta medida é uma afronta ao conhecimento científico, afastando nosso país das principais potências mundiais.”
Para o glaciólogo Jefferson Cardia Simões, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vice-presidente do Scientific Committtee on Antarctic Research (SCAR), órgão máximo da pesquisa antártica internacional, a portaria é “uma ameaça a algo sagrado na ciência: a liberdade de trocas de ideias”. Ele lembra que hoje ela é baseada em intensa cooperação internacional, não só em congressos, mas missões para produção de artigos, análise laboratoriais e projetos científicos conjuntos.
Além disso, diz ele, o uso da ciência para resolver problemas comuns da humanidade, é cada vez mais importante. “Se algumas das atividades podem ser resolvidas com a participação de apenas um indivíduo, cada vez mais a investigação científica é atividade de grupo (e mesmo comunidade inteiras)”, explica Simões. “Ao baixar uma portaria que permite somente a viagem de um ou dois indivíduos por unidade, o MEC não só dificulta essas atividades, mas reduz a possibilidade de cooperação internacional.”
Os cientistas também criticam outro aspecto da portaria: ela se aplica igualmente àqueles que viajam sem custos para o MEC, bancados pelos organizadores dos eventos, instituições estrangeiras ou recursos próprios. “O argumento para nova norma seria o de contenção de custos, mas nos parece estranha essa justificativa, já que limita tanto viagens com ônus (ou seja, em que a administração custeia passagens e diárias para o evento) com ônus limitado (apenas indica que o salário do servidor continua a ser pago durante o congresso, mas normalmente ele é responsável pelo custeio das passagens e diárias, geralmente de agências de fomento ou mesmo recursos próprios) ou mesmo sem ônus”, diz o pesquisador Reinaldo de Brito, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). “Pela nossa experiência, participações em congresso muito raramente foram custeadas pela nossa instituição.”
Isso significa que vai haver aumento da burocracia. “Mesmo que o cientista tenha financiamento de projeto de pesquisa ou pagando de seu próprio bolso a participação em congresso, a burocracia será a mesma”, diz o bioquímico Emanuel Souza, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Isso significa que ele terá de fazer um relatório para a agência financiadora e outro para a instituição, por meio do Sistema de Concessão de Diárias e Passagens (SCDP), ligado ao Ministério da Economia. Ou seja, será uma dupla prestação de contas.”
Mas as consequências mais graves da nova norma serão mesmo para o desenvolvimento da ciência brasileira. “Todas as pessoas que praticam a atividade, incluindo cientistas e alunos, serão prejudicados, se o artigo 5 da Portaria 2.227 não for revisto”, alerta a pesquisadora Raquel Regina Bonelli, falando em nome do Instituto de Microbiologia da UFRJ.
“Não é possível organizar fóruns, congressos e simpósios se os especialistas no tema não têm autonomia para confirmar sua disponibilidade em participar. Será também prejudicada a sociedade, pois fica comprometida a qualidade de eventos que são utilizados como fonte de informação para profissionais e jornalistas científicos.”
Sua colega de universidade, Maite Vaslin de Freitas Silva, vai mais longe. “As consequências para os pesquisadores e para a ciência brasileira são gravíssimas”, diz. “A pesquisa não é feita em ilhas ou laboratórios fechados. Para ela progredir e para o estudo fazer sentido, os achados experimentais devem ser compartilhados entre os cientistas. Para tanto, é uma das atividades básicas deles a troca de conhecimento e descobertas, o que se dá participando de congressos, feiras, seminários no Brasil e no exterior.”
De acordo com ela, de nada adianta um cientista ter achados importantes em seu laboratório se ele não os expuser ao escrutínio dos seus pares no mundo todo. “Descobertas só fazem sentido e servem para gerar progresso se forem expostas e amplamente discutidas pela comunidade científica mundial. Estas discussões se dão justamente nestes fóruns abertos que são as feiras, congressos, simpósios e encontros. Se ela fica restrita, sem debate, ela não será implementada e não servirá de base para o crescimento da área de pesquisa da qual faz parte.”