Depois de encarar a pandemia de aids nos anos 1990, a médica curitibana Mariângela Simão está agora enfrentando a covid-19. Mas não de qualquer lugar: Simão é desde 2017 diretora-assistente de Acesso a Medicamentos, Vacinas e Produtos Farmacêuticos da Organização Mundial da Saúde (OMS). Formada em medicina pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), ela se dedicou à saúde pública desde o começo da carreira. Após a residência em pediatria, fez especialização e mestrado nessa área e ocupou vários cargos públicos, passando, ainda em Curitiba, pelas secretarias municipal e estadual da Saúde, nas quais ajudou a implementar e regionalizar do Sistema Único de Saúde (SUS). Atuou no departamento internacional de combate à aids do Ministério da Saúde até chegar, há quatro anos, à OMS. Trabalhando em home office em Genebra, Suíça – cidade sede da OMS – a médica concedeu uma entrevista exclusiva ao Jornal da Ciência por Skype. Leia a seguir, os principais trechos:
Jornal da Ciência – A tecnologia de vacinas contra a covid-19 passou por uma grande evolução a partir da genética, especialmente com o RNA mensageiro (mRNA). Porém, essas novas técnicas estão por enquanto restritas aos países ricos. Como a Sra. vê essas novas tecnologias e qual a perspectiva de elas chegarem aos países em desenvolvimento e mais pobres?
Mariângela Simão – A tecnologia já existia, o RNA mensageiro não saiu do nada. A Moderna já tinha a plataforma do mRNA que teve um grande investimento do governo americano e, quando chegou a pandemia, ela pode adaptar e fazer os ensaios clínicos rapidamente e chegar no mercado. A vacina da Pfizer é na verdade alemã, desenvolvida pela Biontech, que também era uma empresa menor dedicada a essa tecnologia e que estava trabalhando com aplicação dessa tecnologia para tratamento de câncer. Há uma terceira vacina que está finalizando a fase 3, usando a mesma tecnologia, que é a Curevac, também alemã e será comercializada pela Bayer – deve estar concluindo em julho desse ano.
Essas empresas, principalmente a Moderna e a Pfizer, fizeram grandes contratos sob risco com os países mais ricos no ano passado, antes de se ter a comprovação da pesquisa de que elas iriam funcionar. Alguns dos países desenvolvidos puderam investir sob risco, fizeram contratos com várias plataformas e compraram essas vacinas antes dos outros, inclusive antes que o consórcio global Covax Facility, que a OMS participa ativamente, conseguisse recursos suficientes, pois não são vacinas baratas e necessitam de uma rede de resfriamento diferente.
JC – São bem poucos e concentrados, não? O que a OMS pode fazer para disseminar essa tecnologia?
MS – A OMS lançou uma chamada para que países e centros de pesquisa se candidatassem a fazer parte de uma rede que vai ter transferência de tecnologia e vai trabalhar com o desenvolvimento de plataformas com mRNA para poder dar conta de outras pandemias, que possam ser adaptadas rapidamente. O Brasil se candidatou, obviamente, assim como outros – acho que 33 países se candidataram até o momento. É um processo que leva dois a três anos para fazer essa transferência que, você tem razão, está extremamente concentrada em dois países.
JC – A essa altura da pandemia, o Brasil perdeu a oportunidade de fazer a testagem em massa para a identificação das variantes do novo coronavírus, inclusive com perda de milhares de testes estocados no ano passado. Na sua opinião, ainda está em tempo testar e rastrear os vacinados? Seria viável? Existe algum tipo de apoio da OMS para a testagem pós-vacinação no caso da covid-19?
MS – O teste é para saber se a pessoa tem o vírus ou não, e é fundamental. Mas quando se fala em variantes ou monitorar as mutações do vírus, é necessário fazer o sequenciamento do DNA do vírus.
JC – Como o Brasil tem se saído no sequenciamento, na sua opinião?
MS – O perfil do sequenciamento genético é extremamente importante para monitorar e o Brasil tem história de fazer isso bem, mas não está se saindo tão bem como poderia, precisa de mais investimentos, que têm que vir, em grande parte, do governo.
JC – A OMS tem apoio para o sequenciamento?
MS – A OMS não tem apoio financeiro para esse tipo de coisa, o que ela faz é juntar os parceiros, colocar as diferentes entidades em contato, mas tem que ter investimento do próprio governo ou parceiros internacionais se for investimento financeiro. A OMS tem a capacidade de facilitar a rede, otimizar e fazer a chamada para que tenha mais investimento na área. Também estabelece as normas técnicas para coleta, otimização, quando se classifica uma variante como mais importante que outra. Isso a OMS faz e ajuda, no caso de uma variante na China, na Índia ou nos EUA, quando se fala em variante de interesse de saúde pública, todos sabem o que é, porque a OMS estabelece os parâmetros para comparação.
JC – Diversas variantes estão surgindo em vários países. Diante disso, é possível pensar em um esquema vacinal para as diferentes variantes do coronavírus?
MS – Algumas das vacinas que estão no mercado já estão sendo testadas em ambientes que têm maior prevalência de uma das variantes. Por exemplo, a vacina da Janssen, que é da Johnson & Johnson, foi testada na África do Sul e demonstrou ser 72% a 77% eficaz contra a variante predominante naquele país. Então os produtores já estão trabalhando para verificar quanto a vacina será capaz de suscitar uma reação imunológica se a infecção for por uma variante. Está acontecendo bastante esse tipo de pesquisa no momento.
JC – Então é possível pensar em esquemas vacinais para as variantes?
MS – Se será necessário um novo programa, ainda não se sabe. Já se sabe qual o intervalo e quem precisa só uma dose, o que por enquanto é só a vacina da Janssen, as outras todas precisam de duas doses. Se vai precisar ter um reforço anual ainda não está comprovado porque como as vacinas começaram a ser aplicadas muito recentemente, a primeira ocorreu em dezembro, ainda não se sabe quanto tempo vai durar a imunidade, se é duradoura ou temporária, e também não se sabe como ela vai se comportar com o vírus mudando. Ainda não há resposta para essa pergunta.
JC – Como vê a possibilidade de empresas privadas adquirirem vacinas para aplicação em seus funcionários como prevê projeto aprovado no Congresso brasileiro? Como isso repercutiria no Plano Nacional de Imunizações em implementação no SUS hoje?
MS – Veja, a prioridade da OMS é a iniciativa de vacinas, o GAVI (sigla em inglês para Aliança Global por Vacinas e Imunizantes) e a Coalizão para Preparação de Pandemias. Para muitas das indústrias farmacêuticas a prioridade também é para distribuição por meio de mecanismos públicos. Isso porque não deveria haver um acesso diferencial se a pessoa pode ou não pagar. Por exemplo, eu agora moro em um país rico, que é a Suíça, sede da OMS, e aqui não tem nada de graça, não tem SUS, todos têm que ter seguro de saúde. Mas no caso da vacina, o governo está pagando. Só o governo comprou e é quem está administrando as doses. Então, a priorização tem que ser por meio do sistema público, essa tem sido a posição da OMS.
JC – Por quê?
MS – Porque esse ano é vital que você proteja todos os profissionais de saúde e aquelas pessoas que têm maior risco de adoecer gravemente e morrer, que são as pessoas acima de 65 anos ou que tenham alguma doença associada. Agora, se a pessoa pode ou não pagar, não deveria entrar nessa equação, é preciso que seja um sistema em que todos têm acesso pelos mecanismos públicos.
JC – Como vê o complexo industrial de saúde brasileiro hoje? É capaz de dar conta dos desafios dessa e das próximas pandemias?
MS – O Brasil, tradicionalmente, tem muito boa capacidade de produção de insumos em geral, é um grande produtor de vacinas, produz para o mercado internacional, tanto por meio do Butantan quanto pela Fiocruz. E tem uma história também de farmacêuticos, com bastante capacidade instalada da indústria nacional, seja estatal ou privada. E hoje, apesar das pessoas estarem insatisfeitas com a velocidade da vacinação no Brasil, se olhar os números da porcentagem de população coberta, o Brasil é um dos países que conseguiu uma maior cobertura entre os em desenvolvimento, acredito que seja a maior cobertura, e isso se dá devido à capacidade de produção nacional, tanto do Butantan quanto da Fiocruz.
JC – A posição do Brasil é boa em números absolutos, mas em proporção da população vacinada é baixo…
MS – É que o mundo está passando por uma dificuldade enorme de cobertura de vacinação, acredito que o Brasil é bem semelhante em cobertura – pelo menos era na semana passada (fim de abril) – em porcentagem da população do que está acontecendo nos países da Europa. Se olhar as estatísticas no site internacional One World in Data (base mundial de dados sobre a vacinação), vai ver que o Brasil está acho que com 20% na primeira dose, é o que tem a Suíça. É suficiente? Não, mas estamos falando de disponibilidade de vacinas e capacidade.
JC – Também houve atrasos na compra da vacina.
MS – O Brasil tem capacidade de vacinar mais gente, mas não tem vacina suficiente porque não tem vacina suficiente no mundo. E por isso que a OMS está insistindo que as medidas de saúde pública têm que continuar sendo observadas, inclusive em situações muito extremas de fechamento do comércio, porque você tem que diminuir a transmissão do vírus na comunidade de modo que o sistema de saúde não fique assoberbado como aconteceu no Brasil, e está acontecendo na Índia no momento e até na Inglaterra, o berço da cobertura universal de saúde, do sistema estatal de saúde.
JC – O que a OMS pode fazer para aumentar a oferta de vacinas?
MS – Temos esse nacionalismo de vacina, alguns países compraram boa parte do suprimento global e hoje têm mais vacinas contratadas do que (necessitam para toda a) população, e o esforço grande é que esses países doem essas vacinas excessivas que têm. O meu chefe, o Dr Tedros (Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da OMS), diz que é um ‘ultraje moral’ que você tenha países que estão vacinando populações jovens, que têm menor risco de adoecer gravemente e morrer, enquanto tem países que não começaram a vacinar ninguém ainda, não conseguiram no mínimo vacinar todos os seus profissionais de saúde. Então, essa iniquidade no acesso é extremamente importante. Mas o Brasil está numa situação melhor porque tem produção nacional.
JC – Há algo que a OMS possa fazer para convencer os países que contrataram mais vacinas que o necessário a compartilharem essas doses excedentes?
MS – Os países são soberanos e podem tomar as decisões que quiserem sobre seus recursos e a forma como utilizam. O que a OMS está colocando e vai ser discutido agora na Assembleia Mundial da Saúde (leia mais na página 14) é que se tenha um tratado para pandemias, uma coisa semelhante que aconteceu com o tabaco, o fumo, que demorou muitos anos para se ter um acordo na convenção do tabaco, mas saiu e hoje você tem todas as restrições que inclusive obrigam os produtores a colocar o alerta no maço de cigarros.
JC – Por que, na sua visão, os institutos de pesquisas brasileiros não se articulam para a produção de fármacos e vacinas? Isso possibilitaria uma maior independência nacional da importação de insumos?
MS – Acho que os institutos brasileiros são bem articulados, com certeza, fazem parte de redes internacionais. Por exemplo, na área de imunizantes, o Brasil faz parte da rede de países em desenvolvimento de vacinas, é um dos organizadores, por meio do Butantan, de uma rede emergente para biofármacos, que é um tipo novo de medicamento, como os anticorpos monoclonais. O Brasil tem bastante atuação internacional, a Fiocruz é uma instituição super bem-conceituada e bem conectada globalmente, não vejo que haja problemas para o Brasil estar presente na rede de pesquisa e produção de medicamentos ou vacinas.
JC – Mas existe uma deficiência na articulação dos laboratórios de pesquisa com a indústria. Há pesquisadores de alto nível, mas o projeto não sai da universidade, não sai dos laboratórios, tanto para vacinas quanto para medicamentos. Como a Sra. vê essa situação?
MS – Você tem o Butantan agora finalizando estudo de fase dois de uma vacina que foi produzida desde o começo por ele mesmo. É verdade que entre pesquisar uma fase pré- -clínica, de laboratório, e chegar no mercado, precisa muito dinheiro, não tem dúvida. Tem que ter incentivos para pesquisa e desenvolvimento, porque, por exemplo, fazer um estudo clínico custa muito caro. Não é tão caro quanto uma parte da indústria diz que custa para justificar um alto preço, mas não é barato. Você tem que ter fontes de investimento e o Brasil tem algumas delas. Eu não tenho trabalhado com o Brasil, então não sei quanto está investindo nos diferentes institutos de incentivo à pesquisa.
JC – Qual a dificuldade de conexão entre a pesquisa e a chegada de um produto farmacêutico no mercado?
MS – Há custos e riscos. Você pode ter um produto x, y, z que chegou à fase dois e foi muito bom, mas você tem que terminar todas as fases. Nós vimos com a invermectina, a hidroxicloroquina no Brasil e em outros países que houve uma euforia quando ainda não havia estudos em seres humanos. Tudo funciona no laboratório, mas quando você passa para fazer os testes em seres humanos é que a coisa complica. Para entrar no mercado o produto tem que ser seguro e ter eficácia, então é preciso investir para fazer esses estudos clínicos. Nesse sentido, tem um gargalo no Brasil, no incentivo à pesquisa e desenvolvimento que dê conta, porque se dizia hoje que de cada dez candidatos à vacina, dois chegavam à fase 3. Você tem que ter recursos para investir sob risco de não dar certo.
JC – Como cobrir esse gargalo?
MS – É preciso recursos governamentais, de fundos de investimentos, e tem que ter uma política nacional de investimentos em pesquisa.
JC – O que podemos aprender com China e Índia sobre a soberania/independência nacional na produção de insumos e CT&I estratégicos para atender constantes situações de emergência de saúde pública nacionais, regionais e globais, historicamente?
MS – Não diria tanto com relação à China, porque ela produz muita matéria prima, os ingredientes farmacêuticos ativos, da aspirina ao antibiótico, ao produto da vacina. A Índia é um grande produtor de genéricos. Houve um fator que impulsionou a indústria farmacêutica indiana no que diz respeito aos genéricos que foi ela ter demorado a aderir aos acordos de propriedade intelectual (TRIPS), ela tinha dez anos para aderir e só aderiu quando acabou o prazo. O Brasil foi um dos primeiros a aderir e isso limita a capacidade do país de desenvolver e copiar produtos, porque eles são protegidos por patentes. A Índia usou bem os dez anos que teve e se estabeleceu, hoje ela tem companhias tanto de genéricos de produtos farmacêuticos como produtores de vacinas de grande porte. O Instituto Serum produz para o Brasil faz muitos anos, há 30 anos já tinha vacinas vindas da Índia.
A edição especial do Jornal da Ciência, “Em busca da vacina verde-amarela”, está disponível para download gratuito neste link. Acesse a publicação completa e compartilhe!
Janes Rocha