“A gente poderia ainda no primeiro ano de história da pandemia ter salvo 120 mil vidas”

Apresentado à CPI da Covid-19 na última quinta-feira, 24, pela médica e diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, estudo encomendado pelo grupo Alerta, que reúne sete entidades da sociedade civil – Anistia Internacional Brasil, Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, Idec, Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Inesc, Oxfam Brasil e a SBPC -, teve grande repercussão na imprensa nacional
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado
Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

O estudo apresentado na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 pela representante do Grupo Alerta, Jurema Werneck, médica e diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, na última quinta-feira, 24, teve grande repercussão em toda a imprensa nacional. A pesquisa aponta que mais de 120 mil mortes por covid poderiam ter sido evitadas no primeiro ano de pandemia, sem considerar o impacto da vacinação, se o Brasil tivesse adotado de maneira mais firme e ampla medidas preventivas como distanciamento social, restrição a aglomerações e fechamento de escolas e do comércio. O estudo foi encomendado pelo grupo Alerta, que reúne sete entidades da sociedade civil – Anistia Internacional Brasil, Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Oxfam Brasil e a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC).

“A gente poderia ainda no primeiro ano de história da pandemia ter salvo 120 mil vidas. Esses não são números. São pais, são mães, são irmãos, são sobrinhos, são tios, são vizinhos. A gente poderia ter salvo pessoas, se uma política efetiva de controle, baseada em ações não farmacológicas, tivesse sido implementada”, disse Werneck à Comissão.

Para chegar a este número, os pesquisadores calcularam o excesso de mortes por causas naturais no primeiro ano da pandemia, de março de 2020, após a primeira morte registrada no Brasil, até março de 2021. Constataram 305 mil mortes acima do que seria esperado com base nos óbitos registrados entre 2015 e 2019.

Essa estimativa abarca não apenas as mortes diretamente ocasionadas pela covid-19, mas também os óbitos indiretos, provocados, por exemplo, pelo atraso no diagnóstico ou falta de tratamento de outras doenças, por conta da saturação do sistema de saúde. Por outro lado, esse excesso já leva em conta os efeitos das medidas de isolamento e restrição de atividades implementadas por governadores e prefeitos no período, ainda que parciais e de baixa intensidade.

“Mesmo na ausência de vacina, existem um conjunto de medidas que reduz a probabilidade de contaminação. Nós somos um exemplo. Estamos de máscara, a comissão está sendo testada periodicamente”, ressaltou a médica em seu depoimento à CPI.

Na sequência, o estudo constatou que poderiam ter sido registrados 40% menos óbitos até março de 2021, caso as medidas preventivas de isolamento social e restrição às atividades econômicas e educacionais tivessem sido aplicadas corretamente no País. Essa estimativa foi feita com base em relatórios científicos publicados nas revistas Science e Nature, que calcularam a efetividade dessas ações na redução da transmissão do vírus e na mortalidade em diversos países.

Um segundo eixo do estudo analisou os efeitos da falta de preparação do sistema de saúde como fator de ocorrência de mortes que poderiam ter sido evitadas. Revelou, entre outras coisas, que 20.642 pessoas (ou 11,3% do total de registros de internação) perderam a vida à espera de atendimento. Esse dado também se refere apenas aos primeiros 12 meses de pandemia, ou seja, não abrangeu o período de maior mortalidade até o momento, ocorrido entre março e maio de 2021.

A maioria dos óbitos em prontos-socorros ou pronto-atendimentos foi registrada em unidades públicas de saúde. A falta de acesso a leitos também atingiu um número proporcionalmente maior de pessoas negras e indígenas: os óbitos na fila de espera representaram 13,1% das internações entre as pessoas negras e indígenas, e 9,2% entre as pessoas brancas.

“As desigualdades estruturais tiveram influência sobre as altas taxas de mortalidade. E quando a gente cruza com diferentes marcadores, a gente vê que a maioria das pessoas que morreram no Brasil eram negras, eram indígenas, eram pessoas de baixa renda e de baixa escolaridade”, ressaltou Werneck.

O estudo também olhou para o acesso a testes diagnósticos – menos de 14% da população realizou testes até novembro de 2020. Uma das constatações aponta para desigualdades na concentração da população que realizou os exames: em novembro, por exemplo, pessoas com renda maior do que quatro salários mínimos consumiram quatro vezes mais testes do que as pessoas que vivem com menos de meio salário mínimo.

O estudo foi conduzido pelos pesquisadores do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Guilherme Werneck, Lígia Bahia e Jéssica Pronestino de Lima Moreira e também pelo professor Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

Além dos dados, a pesquisa também traz recomendações à CPI da Covid-19, entre elas a criação de um memorial nacional em homenagem às vítimas da pandemia e a criação de uma frente nacional de enfrentamento à doença que inclua diferentes setores e poderes e seja liderada por um comitê técnico de especialistas. (Veja aqui o estudo na íntegra).

“Lideranças não podem dividir ao invés de agregar. Nunca. Especialmente em um momento de pandemia”, concluiu Werneck.

Junto à Werneck, falou também à CPI o epidemiologista da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal. Segundo ele um em cada cinco mortes pela covid-19 no Brasil poderiam ter sido evitadas se o governo federal tivesse adotado outra postura diante da doença.

Hallal apontou que o país concentra 13% das mortes no mundo pela doença, um número muito discrepante do resto do planeta, se considerar que 2,7% da população mundial vive no Brasil. Se a aquisição de vacinas e o ritmo da imunização não tivessem sido tão lentos, se o governo tivesse apoiado o que cientistas demonstraram ser eficiente como medidas preventivas, o país poderia ter tido um desempenho dentro da média mundial e, cerca de 400 mil vidas poderiam ter sido salvas.

“Fizemos uma análise que estimou que especificamente o atraso na compra das vacinas da Pfizer e da CoronaVac resultou em 95,5 mil mortes. E logo depois, outros pesquisadores analisaram os dados não especificamente dessas vacinas, mas o ritmo da campanha de vacinação que teria sido, caso tivéssemos adquirido, e eles estimaram 145 mil mortes especificamente pela falta de aquisição de vacinas tempestivamente pelo governo federal”, declarou.

Jornal da Ciência