A violência no Brasil mantém, historicamente, o caráter de problema crônico, que atinge a sociedade de forma desigual, prejudicando mais os mais vulneráveis. Uma das características do cenário atual é a intensidade crescente da violência policial em meio a um sistema com alta capacidade de fiscalização que, no entanto, não fiscaliza, abrindo espaço para sistemáticas violações aos direitos humanos.
O diagnóstico foi feito na última sexta-feira (23/7) durante a mesa-redonda intitulada “Estado e Violência nas Prisões, nas Aldeias e na Vida Cotidiana”, dentro da programação da 73ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
A atividade foi coordenada por Ennio Candotti, presidente de honra da SBPC e diretor do Museu da Amazônia (MUSA), e teve como palestrantes Daniel Antônio Sarmento, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj); Fábio Magalhães Candotti, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e coordenador do projeto Infocadeia (Informações sobre Encarceramento no Amazonas); e o antropólogo Felipe Cruz Tuxá, ativista dos direitos dos povos indígenas e professor e pesquisador da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
Daniel Sarmento apresentou os principais dados sobre encarceramento no Brasil, país que está em terceiro lugar no mundo em população carcerária com estimados 740 mil a 790 mil presos, número que praticamente multiplicou-se por dez nos últimos trinta anos. “Essa superpopulação gera gravíssimas violações de direitos humanos”, alertou, frisando que “quanto mais se prende, pior a situação da segurança pública.”
O quadro não é novo, mas está agravado por ações do governo federal que desmonta políticas públicas de promoção de direitos, aparelha os órgãos de controle e incentiva a violência civil e militar. “É um cenário em que a violência, que já é um problema crônico no País, se torna ainda mais grave”, analisou Sarmento.
Felipe Cruz, do povo Tuxá, da Bahia, definiu a violência contra os indígenas como “estrutural e incessante”, marcada mais recentemente pela influência de um presidente da República que sustenta o discurso anti-indígena desde a campanha eleitoral. Mesmo antes de se eleger, Jair Bolsonaro já tinha dito que, caso fosse eleit, não demarcaria nem um milímetro a mais de terra indígena. Para Cruz, isso marca uma mudança forte de abordagem, não só em relação ao discurso, mas também com o desmonte de políticas públicas voltadas a estas populações. “Um dos efeitos das falas e ações do presidente Bolsonaro tem sido mobilizar a sociedade civil contra os povos indígenas”, afirmou Felipe Tuxá.
No Amazonas, todo esse cenário se amplifica, atingindo não só os indígenas – que estão em maioria naquele estado –, mas toda a população mais vulnerável, segundo relato de Fabio Candotti. “Essa perspectiva da Amazônia sem Estado, sem lei, se vê de maneira bastante forte a partir de 2017, com o massacre brutal no presídio de Manaus”, disse, referindo-se à rebelião do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), na qual 56 pessoas morreram.
Candotti alertou para o perigo da narrativa comum de que as pessoas saem mais perigosas do sistema carcerário do que quando entraram. Segundo ele, quando saem, as pessoas estão mais “adoecidas física e psicologicamente, muito mais revoltadas” e não se trata de terem passado por uma “faculdade do crime”, mas uma “faculdade do ódio”, com muito mais dívidas, não só financeiras, mas morais.
Ao final, Ennio Candotti destacou que, apesar do recrudescimento da violência do Estado, os movimentos sociais estão firmes e em muito maior número hoje do que eram ao fim da ditadura civil-militar (1964-1985). “Isso é muito importante e pode fazer diferença em políticas que possam ser adotadas por um novo governo civilizado”, afirmou.
Jornal da Ciência