Vida Secas, de Graciliano Ramos, é ambientado no sertão, região marcada pelas chuvas escassas e irregulares. Essa falta de chuva – somada a uma política de descaso do governo com os investimentos – transforma o lugar em ambiente de difícil sobrevivência e de desesperança. O cenário descrito na literatura se compara à escassez de recursos enfrentada pela comunidade científica atualmente, agravado com o último remanejo orçamentário realizado pelo governo federal, que retirou 600 milhões de reais que seriam destinados ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por meio do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).
A notícia chegou como um corte de água em meio à seca prolongada. “É como cortar a irrigação de uma plantação. Ela vai morrer. Nossa responsabilidade é pressionar para abrirem a torneira novamente”, enfatiza a diretora da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e professora do Instituto de Física da UFRGS, Marcia Barbosa, eleita pela revista Forbes como uma das 20 mulheres mais influentes no Brasil em 2020. O site da revista científica britânica Nature também repercutiu a medida e a chamou de mais um golpe na ciência. “A comunidade científica brasileira está chocada com mais um golpe no financiamento da pesquisa”, inicia a notícia publicada em 22 de outubro.
A modificação do Projeto de Lei n.º 16, feita no dia 8 de outubro pela Comissão Mista do Orçamento do Congresso Nacional, atendeu a ofício enviado pelo Ministro da Economia e retirou os recursos destinados a bolsas e ao apoio à pesquisa do MCTI, o que impossibilita projetos já agendados pelo CNPq.
“O impacto será imenso. Esse financiamento iria cobrir projetos estruturais do CNPq, como a chamada do Edital Universal – considerado o mais democrático porque financia bolsas de pós-graduação de mestrado a pós-doutorado, e que já não acontecia há três anos –, o Programa de Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex), os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (Inct) e o aumento de número e valor das bolsas”, declara Marcia Barbosa
O presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, salienta que a ciência brasileira vive um momento de repleta incerteza. Ribeiro cita o caso do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos. O supercomputador Tupã, terceiro maior do mundo em previsão operacional de tempo e clima sazonal e o oitavo em previsão de mudanças climáticas, sofreu ameaça de ser desligado por falta de recursos para manutenção. “Isso prejudica decisões nacionais de segurança alimentar, energética e hídrica, havendo um grande impacto econômico e científico no Brasil. Veja só: a gente está no meio de uma estiagem e sequer tem um termômetro para saber se há previsão de chuva. Imagina o que vai acontecer com os milhares de laboratórios de pesquisa no país afora.”
“Vamos ter um apagão na ciência que vai repercutir por décadas”, diz Renato Janine Ribeiro
O financiamento à pesquisa vem diminuindo desde 2014. Após 2018, com o contingenciamento, a redução tornou-se ainda mais severa. O presidente do CNPq, Evaldo Vilela, lembra que no total há cerca de 30 mil pesquisadores no Brasil, mas muitos estão deixando o país por falta de perspectivas. “Estamos perdendo tanto cientistas experientes como novos. Na última semana, dois conhecidos meus foram para o exterior. É uma evasão de cérebros”, lamenta.
Vilela participou do debate da mobilização em defesa da ciência da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) [confira o vídeo], no dia 15 de outubro, em que também apresentou a capacidade financeira da entidade que é a principal agência de fomento da ciência do país. Em 2014, ainda com recursos do Ciência sem Fronteiras, o valor empenhado para bolsas passou de 2,5 milhões de reais; em 2020, não chegou a 1,2 milhão de reais.
Armadilha do orçamento
O pano de fundo de todo o problema é a Emenda Constitucional n.º 95, também conhecida como Teto dos Gastos Públicos, aprovada pelo Congresso em 2016. “Essa legislação só olha para as despesas, sem levar em conta a variação das receitas. O governo não pode gastar no ano mais do que a despesa do ano anterior corrigida pela inflação do IPCA. Ela torna o funcionamento do Estado inviável a partir do próximo ano – ciência e tecnologia é uma das áreas [afetadas]. Para pagar o benefício social, por exemplo, o próprio governo pediu para furar o teto de gastos”, contextualiza o reitor e presidente da Andifes, Marcus David.
A redistribuição das receitas do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) faz parte dessa restrição legal e política, o que leva o governo a reduzir cada vez mais os gastos discricionários (não obrigatórios) sem que os gastos obrigatórios sejam afetados. Poderá reduzir esses gastos até zero, ou seja, até eliminar o espaço para os investimentos e o custeio, o que resultará na paralisação da atividade do poder público.
“Os recursos vieram de empresas que têm interesse no desenvolvimento tecnológico e estavam lá disponíveis. O governo os pegou para cobrir demandas em outros ministérios, afetando diretamente o financiamento do Edital Universal e os 15 fundos setoriais, entre eles, saúde, biotecnologia, agronegócio, petróleo, energia, recursos hídricos, informática. Para as duas áreas seriam destinados cerca de 500 milhões de reais. O que era esperança virou frustração”, lamenta o reitor.
“Estamos em meio a uma verdadeira armadilha orçamentária”, aponta Marcus David.
Impacto no presente e no futuro
O vice-pró-reitor de Pesquisa da UFRGS, Jefferson Simões, prevê cinco consequências imediatas aos cortes de recursos: paralisação das atividades gerais dos laboratórios de pesquisa – porque não há dinheiro para a manutenção; redução a zero das bolsas para jovens cientistas; desistência da carreira de cientista dos pesquisadores que estão começando – e fuga de cérebros experientes para outros países; comprometimento da continuidade dos 122 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) no RS – que formaram 10.994 pesquisadores nos últimos 10 anos; e falta de recurso para a realização do Edital Universal do CNPq, que iria atender a cerca de oito mil propostas e, agora, enfrenta futuro incerto.
O mais grave ainda se dá pela total falta de visão de desenvolvimento para o país.
“Sem investimentos em inovação e tecnologia, nem o setor do agronegócio se mantém competitivo. Alguém acredita que vamos ter desenvolvimento à base de commodity?”, indaga Jefferson Simões.
Simões diz que se trata da negação do racional e de ataque a toda comunidade científica brasileira. “Estamos sofrendo cortes substanciais nos últimos anos, desde o tipo de incentivo a pesquisa científica, projetos, número de bolsas e de bolsistas. Na UFRGS, só conseguimos aumentar o número de bolsas não científicas, porque reduzimos 30% das despesas não obrigatórias.”
“Já sentimos os efeitos da redução de financiamento na pesquisa. Sofremos com a falta de insumos e equipamentos durante a crise sanitária”, lembra a diretora da ABC. Em médio prazo, irão faltar recursos humanos, porque estudantes estão indo embora. “Não teremos cientistas para atuar nas empresas e na academia quando antigos como eu se aposentarem”, projeta Marcia. Já em longo prazo, “se não criarmos políticas compensatórias a partir no novo governo de 2023, o Brasil será reduzido a um país produtor de serviços de baixa qualidade tecnológica. Nem o agronegócio irá prosperar, porque para ter agro tem que haver ciência na produção de alimentos, na qualidade da água, na energia”, completa.
O presidente da SBPC rechaça o argumento do governo de que não há dinheiro. “Recursos há, é uma questão de prioridade de uso. Vamos pegar a Reforma Administrativa e comparar carreira militar e científica. Hoje um militar de 15 anos ganha mais do que um pesquisador de 30 com todas as pós-graduações. Há quanto tempo não temos guerras, e qual a ameaça de haver uma?”, questiona. No entanto, a reforma quer mudar a carreira pública em geral, sem mexer em nada na militar.
“Um pesquisador de doutorado recebe bolsa de 2,2 mil reais sem contar tempo para aposentadoria, enquanto um militar começa a somar tempo desde os 15 anos e se aposenta com salário integral. Então, um está nadando a braçadas, o outra, à míngua”, afirma Renato Janine Ribeiro.
Conforme dados apresentados pelo presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), Odir Dellagostin no debate da Andifes do dia 15, a defasagem das bolsas de pós-graduação chega a 60% em relação a 2014. Corrigido pelo IPCA, o valor real teria de ser, pelo menos, de 3,4 mil reais para doutorado e de 2,3 mil reais para mestrado, sendo que hoje os valores são de 2,2 mil e 1,5 mil reais respectivamente.
Com essas condições, só pode estudar e pesquisar quem tem dinheiro para se sustentar, porque os incentivos para a carreira de cientista estão cada vez mais fragmentados e pontuais.
“Estamos sobrevivendo com recursos regionais. Felizmente, a Fapergs aponta neste momento tão crítico para a introdução de alguns editais que vão trazer uma sobrevida. Mas muitos jovens estão fugindo desse ecossistema sem futuro”, diz Marcia Barbosa.
Políticas e reconhecimento da ciência
O Brasil é rico em pesquisadores que geraram desenvolvimento e foram inicialmente desacreditados. A ABC, por exemplo, tem um projeto chamado Ciência Gera Desenvolvimento, que narra algumas das pesquisas de cientistas já falecidos.
Um dos casos é o de Johanna Dobereiner. O país nem sempre foi um grande produtor de soja. A cultura que foi muito incentivada pela feminista Pagu, já nos anos 1930, não era muito produtiva. Johanna escolheu uma trilha diversa da usada pelos norte-americanos, que empregavam em abundância adubos nitrogenados. Ela desenvolveu uma forma de fixar o nitrogênio por meio de uma bactéria. Inicialmente o governo não apoiou a estratégia proposta pela pesquisadora, afinal ela discordava das metodologias do irmão do norte. Quando o governo implementou a estratégia, o Brasil se tornou um grande produtor.
No Rio Grande do Sul, há pesquisadores que passaram pelo mesmo processo de descrédito de suas pesquisas, até que receberam reconhecimento internacional. “Precisamos valorizar a nossa ciência. Afinal, santo de casa não somente faz milagre como faz o milagre que o Brasil precisa que seja feito”, comenta a diretora da ABC.
Entre as políticas públicas estruturantes do país, apontam os pesquisadores, estão o Edital Universal – que alimenta grupos emergentes e pesquisas que necessitem de recursos não muito elevados – e o Pronex (Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência) – que apoia de forma fundamental redes regionais e estaduais de médio porte, criando uma ligação sistêmica entre o financiamento federal e o estadual. Somam-se a essas políticas os INCTs, que atuam em colaborações com temas estratégicos e cobrem todo o país.
“Se pensarmos em termos de rodovias, o Edital Universal são as estradas locais; o Pronex, as rodovias estaduais; e o INCTs, as rodovias BR que cruzam nosso país”, aponta Marcia Barbosa.
Outro exemplo dessa política são as bolsas de pós-graduação, que permitem aos estudantes se manterem fazendo pesquisa. A exposição de estudantes à pesquisa internacional, com o Ciência sem Fronteiras, foi outro instrumento de política pública. “O problema do Brasil não é a falta de políticas, mas a falta de regularidade nelas. Em países desenvolvidos, mesmo em tempos de crise, o financiamento da pesquisa persiste ou, em alguns casos, é incrementado. Aqui é a primeira coisa que se corta, como se fosse um luxo”, avalia a diretora da ABC.
Interrupção de projetos promissores
Professor e pesquisador do departamento de Química Orgânica da UFRGS, Jairton Dupont trabalha desde a década de 1990 com os líquidos iônicos, compostos de propriedades únicas para dissolver até mesmo o que parecia impossível por outros métodos, como a celulose. Com sua equipe do Laboratório de Catálise Molecular, ele vem desenvolvendo novas técnicas para capturar e transformar o dióxido de carbono (CO2) em compostos aproveitáveis. O projeto usa CO2 e o transforma em diferentes produtos úteis, como combustíveis. A pesquisa, contudo, corre o risco de ser interrompida por falta de recursos.
Trata-se de uma pesquisa com duplo benefício para a sociedade: ajuda a neutralizar a concentração de gás carbônico responsável pelo efeito estufa no planeta e o transforma em combustíveis como metano, principal constituinte do biogás, uma alternativa renovável de geração de energia elétrica.
Dupont diz não ter vivido nada parecido desde que iniciou sua carreira e vê sua pesquisa sendo prejudicada. “As universidades perderam cerca de 90% dos recursos, então não há dinheiro para contratar pessoal, sustentar a manutenção dos laboratórios e equipamentos básicos. Como se pode fazer pesquisa em tais condições?” Só no Instituto de Química da UFRGS há 400 pesquisadores de pós-graduação sendo afetados com os contingenciamentos.
“São décadas de esforço e investimentos que vão se perder. Mas, se não há garantia de recursos, o prejuízo está dado e o trabalho não será concluído. Este é um caso, mas existem milhares que enfrentam situação semelhante no país todo”, declara Jairton Dupont.
Entidades se mobilizam na reversão da medida
Assim como a Andifes, a ABC e a SBPC também integraram a mobilização nacional em defesa da ciência dos dias 15 e 26 de outubro. No encontro do dia 15, o senador Izalci Lucas (PSDB/DF), da Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado, afirmou que é possível o montante retirado da área pelo Ministério da Economia ser recuperado. Segundo ele, não será votada nenhuma matéria na Comissão Mista de Orçamento até que isso seja feito. Além do mais, disse que os parlamentares vão cobrar a liberação dos cerca de 2 bilhões de reais que ainda faltam referentes ao valor previsto ao MCTI no Orçamento 2021.
O vice-pró-reitor de pesquisa da UFRGS é mais cauteloso. Ele diz não ser fácil reverter o quadro devido ao curto prazo até o fim do ano; no entanto, vê na mobilização e na pressão política a condição necessária para mudar qualquer coisa. “Além de tudo, está em jogo a liberação de 5 bilhões de reais para ciência e tecnologia no orçamento do ano que vem. Então toda pressão e atenção são fundamentais no momento”, salienta.
Para o presidente da Andifes, se a nuvem do teto de gastos não for furada, a crise da seca se agravará daqui para frente. “As consequências se refletem em 10, 15, 20 anos, porque a pesquisa tem fluxos longos para se desenvolver e dar resultados. Inclusive a área da saúde, que estava relativamente protegida devido a medidas legais tomadas na pandemia, será fortemente afetada a partir dos próximos anos”, pontua Marcus.
Segundo a diretora da ABC, o sistema de pesquisa é vascularizado. Assim como nosso corpo precisa de capilares, veias e artérias, a pesquisa precisa de diferentes escalas de financiamento para sobreviver.
“Desafio docentes, discentes e técnicos administrativos a se mobilizarem. Se apropriem da confiança na autoridade do conhecimento e lutem por ela. Se nada for feito, o Brasil morre no final”, diz Marcia Barbosa.
Divulgada no último dia 22 pela Iniciativa para a Ciência a Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), a nota Quanto vale a ciência? sai em defesa da manutenção da estrutura científica do Brasil. “Precisamos enfrentar a crise da covid-19 e encontrar saídas diante da fome de milhões de brasileiros. A Ciência pode contribuir, ajudando a encontrar soluções, como vacinas, remédios e outros avanços tecnológicos que permitam melhorar a economia do país, gerar empregos e garantir um desenvolvimento sustentável. As experiências nacional e internacional mostram que investimentos em ciência e inovação trazem retornos muito maiores que o total investido”, diz parte do manifesto assinado por 25 entidades do setor.