A recente troca na direção do Arquivo Nacional vem preocupando a comunidade científica e acadêmica. A substituição da bibliotecária Neide de Sordi pelo advogado Ricardo Borda D’Água Braga, ligado à área de segurança, vem suscitando vários questionamentos quanto à sua qualificação técnica e experiência para o cargo — e também quanto à preservação do principal depositário de documentos do país. Para discutir o assunto, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) realizou o debate virtual Em Defesa do Arquivo Nacional, transmitido nesta quarta-feira (15) pelo canal da entidade no YouTube. O evento contou com o apoio da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns).
Segundo Renato Janine Ribeiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e presidente da SBPC, a documentação conservada no Arquivo Nacional é insubstituível e merece cuidados criteriosos — o que torna o debate essencial. “Temos dois grandes riscos. O primeiro é a demissão da dirigente do Arquivo, uma pessoa habilitada, capacitada, balizada na gestão de documentos, que foi substituída por uma pessoa que, como infelizmente hoje sói acontecer, não tem conhecimento nessa área, o que coloca em risco o futuro da nossa documentação. O segundo, que agrava esse fato, é a medida do governo que dá direito a vários órgãos da administração pública federal a requisitar documentos que estão no Arquivo, recebê-los e até destruí-los”, alertou na abertura do evento.
A nomeação de Braga aumenta as desconfianças sobre o destino dos documentos públicos, especialmente o acervo sobre o período do regime militar (1964-1985) e as populações indígenas. “O que pode acontecer com essa documentação? A gente não sabe”, alertou Luiz Felipe de Alencastro, professor titular da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, professor emérito da Université de la Sorbonne e membro da Comissão Arns, que coordenou o evento. Há também o receio de que o novo diretor dificulte o acesso ou até mesmo interfira na documentação histórica. “O alerta está dado, os dados estão muito bem explicados, vamos esperar que esta mobilização tenha consequências de curto e de longo prazo”, declarou o pesquisador no encerramento do evento.
Três dias após a indicação de Braga, o Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil (FNArq) e mais 53 entidades de todo o País divulgaram manifesto sua nomeação. Ao longo da semana, outras entidades se manifestaram por cartas abertas. O Ministério Público Federal (MPF) chegou a abrir uma investigação para apurar as circunstâncias de sua indicação para o cargo. Braga, ligado à área de segurança, foi subsecretário de Prevenção à Criminalidade, na Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Federal, e trabalhou como gerente regional de Segurança do Banco do Brasil no Rio de Janeiro. Até o ano passado, era dono de uma empresa de treinamento e segurança no Rio de Janeiro.
Jaime Antunes, ex-diretor do Arquivo Nacional (1992-2016) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), explicou que o governo atual publicou em março de 2019 um decreto para nortear a designação dos dirigentes que assumissem funções comissionadas. “E a nomeação do Sr. Ricardo Borda D’Água Braga absolutamente infringiu todos os dispositivos do decreto do governo que determinava qual o perfil, quais as qualidades, e qual a formação que o diretor deveria ter para assumir um cargo dessa natureza”, apontou o pesquisador. Segundo Antunes, o Decreto descrevia que, para ser diretor, no caso do Arquivo Nacional, o candidato teria que possuir experiência profissional de no mínimo cinco anos de atividades correlatas com as áreas de atuação do órgão e da entidade ou em áreas relacionadas com as atribuições e as competências do cargo e da função. “O que não aconteceu no caso”.
Tesouro nacional
O Arquivo Nacional conserva 1,7 milhão de fotografias e negativos e 112 mil livros (8 mil deles raros), entre outras publicações, charges, cartazes, gravuras, mapas, filmes e áudios. Entre esses verdadeiros tesouros públicos, há muitos documentos sensíveis, como os relacionados à ditadura, do Serviço Nacional de Informações, do Conselho de Segurança Nacional e da Comissão Nacional da Verdade. “Aqui são depositadas a nossa história, as nossas lembranças, e aqui podemos depositar as nossas esperanças. Então temos que bater o pé e dizer: aqui não podemos transigir!”, enfatizou José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns.
A instituição também tem outras atribuições legais, como a gestão da Comissão de Coordenação do Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos da Administração Pública Federal (Siga). Para Beatriz Kushnir, ex-diretora-geral do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (2005-2020) e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), o Arquivo Nacional tem a importante função de promover a cidadania através não apenas da preservação dessa valiosa documentação, mas também da promoção do acesso à informação. “Ficou estabelecido pela constituição cidadã que ao Estado cabe a obrigação de disponibilizar informações e o cidadão tem a prerrogativa de as acessar, nas pesquisas de comprovação dos direitos”, afirmou a pesquisadora, lembrando que a Lei de Acesso à Informação, promulgada em 2011, foi uma conquista do Estado democrático de Direito que pactua com a transparência.
Apagão da memória
Os pesquisadores fizeram um apelo pela preservação da memória nacional, ressaltando a importância de toda a documentação contida no Arquivo Nacional. “Nós defendemos mais um patrimônio nacional que está em risco, assim como a ciência, a educação, a tecnologia, a saúde, o meio ambiente e a inclusão social”, apontou Janine Ribeiro.
Para Luiz Carlos Villalta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e secretário-geral da Associação Nacional de História (Anpuh), a troca do comando do Arquivo Nacional, assim como outras ações do governo federal, tem o papel de destruição de políticas públicas. “Essa política é uma política deliberada que tem um papel de apagar a memória”, alertou o pesquisador. “No caso do Arquivo Nacional temos uma disputa em torno da memória. Se analisarmos o que é feito com o Arquivo Nacional, percebemos que se trata de uma política muito mais ampla, que envolve um esforço orquestrado para apagar a memória. E não apenas a memória antiga, mas especialmente a memória recente, sobre a covid, o uso dos militares, o genocídio dos indígenas, e tudo o que vemos hoje”, afirmou.
Os participantes apontaram que a defesa do Arquivo Nacional é a defesa da memória nacional. “Nós, da Comissão Arns, que temos a responsabilidade de zelar pelos Direitos Humanos como tantas entidades da sociedade civil, lutamos para que o Arquivo Nacional seja mantido da maneira como tem que ser: intocável. Que a qualidade da nossa história aqui seja preservada para a nossa pátria, nossa república, nossa democracia”, finalizou Dias.
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Jornal da Ciência