“O que cresceu, muitas e muitas vezes, nas últimas duas décadas foi a mortalidade por conta de aborto inseguro”, alertou o médico Jefferson Drezett, no último dia da 67ª Reunião Anual da SBPC
Os Objetivos do Milênio da ONU previam uma redução de 75% da taxa de mortalidade materna no Brasil, para que chegasse a 35 em cada 100 mil em 2015. Longe da meta, a taxa nacional atualmente é de 62 por cem mil. Segundo dados do Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres), de dezembro de 2014, o Brasil ocupa a quarta posição do mundo em redução de mortalidade materna, atrás da Guatemala, África do Sul e Iraque – e a criminalização do aborto está entre os principais fatores apontados para o aumento do risco no País.
“O que cresceu, muitas e muitas vezes, nas últimas duas décadas foi a mortalidade por conta de aborto inseguro”, alertou Jefferson Drezett, médico do núcleo de Programas especiais do hospital Pérola Byington, em mesa redonda do último dia da 67ª Reunião Anual da SBPC, dia 17 de julho.
Segundo o Ministério da Saúde, entre 1996 e 2012, cerca de 1500 mulheres morreram em decorrência de abortos de todos os tipos, legais ou ilegais. Porém, esses são dados oficiais. Os números dos que acontecem clandestinamente são muito difíceis de estimar. Calcula-se, no entanto, que, no Brasil, práticas clandestinas tiram a vida de mais de 10 mil pessoas por ano. Se houvesse uma mudança de perspectiva e a prática fosse legalizada e regulamentada, esse número não ultrapassaria 100 ao ano, observa Drezett. “A criminalização é absolutamente ineficaz para reduzir o aborto. Mas é altamente eficiente para matar mulheres”, disse. No mundo, a cada 11 minutos, uma mulher morre por conta de práticas inseguras de abortos realizados na ilegalidade.
O aborto é considerado crime contra a vida humana no código penal brasileiro desde 1940, prevendo, inclusive, detenção de um a três anos para a mulher que o fizer, salvo em caso de violência sexual e risco de morte para mãe. Em 2012, foi votada no Congresso a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54 (ADPF 54), descriminalizando também o aborto em casos de feto anencefálico – descrito ali como “parto antecipado para fim terapêutico”.
O serviço de aborto humanizado para esses casos é disponibilizado gratuitamente pelo Sistema único de Saúde (SUS), mas são poucos os centros com serviço especializado. O médico Olímpio Moraes Filho, da Faculdade de Ciências Médicas de Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), conta que um estudo censitário dos serviços de aborto legal no Brasil mostra que dos 68 serviços disponíveis, apenas 36 realizam aborto. “Temos sete Estados brasileiros sem nenhum serviço de abortamento ativo”, ressaltou.
O serviço, na verdade, pode ser feito em qualquer unidade do SUS que tenha médicos obstetras. A informação para as mulheres que precisam do atendimento é muito deficiente, conforme comentou o médico da UFPE. Outro serviço disponibilizado pelo SUS e pouco divulgado, conforme destacou Moraes Filho, é o teste rápido de gravidez, lançado em 2011 como parte dos serviços da Rede Cegonha. “A informação é redução de danos. Isso é ético. É obrigação do profissional de saúde fornecer todas as informações necessárias para a mulher poder tomar a melhor decisão para ela”, disse.
Controle ideológico
Para o juiz José Henrique Rodrigues Torres, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), a história do aborto no mundo é a história da violência contra mulher, construída sobre a ideologia patriarcal que reproduz na sexualidade as marcas da exclusão e da dominação. “A criminalização do aborto é incutida como um perverso instrumento e controle ideológico da sexualidade da mulher”, argumentou.
Segundo ele, o aborto inseguro é responsável por 25% das mortes maternas na América Latina, e a maioria das mulheres que morrem pertence às classes mais pobres. “A criminalização do aborto é a criminalização da pobreza”, disse.
O juiz citou a exceção do Uruguai, único país da região em que o aborto é uma prática legalizada desde o final de 2012. “No país hoje, a taxa de morte de mulheres por consequência do aborto é zero”, ressalta.
Torres comentou que a criminalização do aborto gera mais problemas sociais do que o próprio aborto. “O natural é que as condutas não sejam criminalizadas. Quando um Estado decide controlar uma conduta, por meio de uma legislação, ele lança mão de uma série de expedientes normativos, de políticas públicas, para evitar a conduta. A pior solução para o controle de uma conduta é a criminalização. E o Brasil continua insistindo na criminalização do aborto, alheio a todo um movimento mundial de descriminalização”, aponta.
(Daniela Klebis/ Jornal da Ciência)