Na última semana, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei nº 3179/12, que regulariza a prática de educação domiciliar no Brasil, também conhecido como homeschooling. Enquanto o PL aguarda votação no plenário do Senado Federal, professores, educadores e demais cientistas já se manifestaram contrários à sua aprovação. Para os especialistas, além da educação domiciliar não conseguir substituir a estrutura de ensino das escolas, ela retira o direito à socialização de crianças e jovens.
“O ensino domiciliar quebra as possibilidades de que crianças e adolescentes tenham direito à proteção contra a violência, o direito a um processo educacional que os conduzam a uma vida plena e elimina a compreensão de que uma das características do processo educativo é a socialização, a construção de uma maneira de viver em sociedade e lidar com seus conflitos e com suas dificuldades”, explica Marta Feijó Barroso, coordenadora do Comissão de Educação Básica da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Feijó complementa que a educação domiciliar fere a compreensão de que a educação é um direito expresso na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. “Não há uma vida em sociedade minimamente harmoniosa que exclua acordos que envolvem o respeito à posição do outro, a capacidade de escuta e conciliação e a aceitação de que há diversidade de opiniões. A escola tem seu papel: desenvolvimento de aprendizagens de saberes, de procedimentos, de atitudes. A família não consegue, no mundo atual, substituí-la. Tirar crianças da escola só tem sentido se acredita-se que a ‘escola tem partido.’”
Professora da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e membro da diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), Alexandra Ayach Anache aponta uma série de problemáticas na aplicação da educação domiciliar, como o aprofundamento das desigualdades sociais, uma vez que grande parte da população de alunos em idade escolar têm baixa renda, a diminuição de espaços escolares institucionais e de profissionais qualificados, a descriminalização das famílias que não matricularem os seus filhos nas escolas e a desqualificação da ciência e, sobretudo, a negação da pedagogia e de seus fundamentos como ciência.
Anache ainda destaca o papel do Estado nesse cenário. “A falta de investimento na educação contribuiu para o sucateamento das escolas e da carreira docente, impactando a qualidade do ensino. Isso não será superado com a proposta de educação domiciliar, uma vez que a política econômica de austeridade fiscal e a ausência de coordenação federal inviabilizaram a execução do Plano Nacional de Educação”, pontua.
Melhoria na qualidade do ensino é demanda urgente
E quais são as reais necessidades da educação básica no País? Para a professora Marta Feijó Barroso, de forma geral, o debate deveria girar em torno da melhoria da qualidade da educação. Isso envolve investimentos nas estruturas físicas das escolas públicas, em salários dignos para professores e servidores com carreira e evolução de serviços que garantam merendas escolares de qualidade, transporte escolar, apoio social, entre outros aspectos.
“O Ministério da Educação precisa garantir o regime de colaboração entre os governos federal, estaduais e municipais para um adequado financiamento da educação e para promoção de ações que transformem a educação num assunto a ser discutido por todos, na comunidade no entorno da escola, no município, no estado. Isso poderia proporcionar a construção coletiva de um projeto educacional solidário, equitativo, que respeite os direitos das crianças e adolescentes”, pontua.
Pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Roseli de Deus Lopes destaca o papel da tecnologia no processo de evolução da educação no País. Apesar das ferramentas digitais terem ganhado força na condução do ensino durante a pandemia, e impulsionado o debate sobre homeschooling, elas não substituem a estrutura educacional já existente.
“Quando a gente fala em educação de qualidade para todos, a gente pensa na educação dessas crianças e jovens e como podemos trabalhar a formação de professores. Existe muito cuidado em soluções que envolvem tecnologias, porque elas são necessárias, mas não substituem as atividades presenciais e todas as ações de atenção que são necessárias, principalmente com crianças menores. A gente pode sim ter alguns complementos que são colocados com tecnologias, e a gente precisa investir nessa área também, inclusive dando conectividade para professores e alunos para que eles possam desenvolver atividades dentro e fora das escolas.”
Presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro ressalta o papel das instituições de ensino enquanto formadoras do desenvolvimento humano. “A educação tem algo que é praticado há milhares de anos: a escola. E apesar de possuir falhas e insuficiências, a escola é a melhor forma de você socializar uma pessoa. Educar não é simplesmente abarrotar a cabeça de uma pessoa com conteúdos. Educar é ensinar uma pessoa a sair de casa, a se relacionar com quem não é do seu mundo restrito e pequeno. Pela educação, você tem que aprender a lidar com adultos que não são seus pais, e isso acontece com os professores e demais funcionários das escolas, e a lidar com crianças que não são suas irmãs, que são os colegas de classe. Se você deixar as crianças em casa, elas não vão ter a possibilidade de se abrir para o mundo. E educar é isso, abrir as cabeças para o mundo, é mostrar que o mundo não se esgota no seu bairro, na sua casa, na sua família, na sua classe social, na sua religião. É mostrar que o mundo é muito mais amplo”, conclui.
No dia 19 de maio, a SBPC enviou uma carta a deputados solicitando que o Congresso rejeitasse o projeto de lei que autoriza a educação domiciliar. O documento foi endossado por mais de 50 sociedades científicas de todo o País. Confira o documento neste link.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência