Brasil teve programas pela igualdade racial e de gênero, mas ações afirmativas vivem ameaças hoje

Para os cientistas que compuseram o 9⁰ seminário da série “Projeto para um Brasil Novo”, é necessário que os políticos olhem para o passado recente do País em prol de medidas igualitárias

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Debater diversidade de gênero e raça no Brasil hoje é entender as ameaças recentes que as políticas afirmativas estão vivendo e olhar para um país plural que se iniciou no cenário legislativo no começo do século XXI. Este é o diagnóstico que permeou o 9⁰ seminário da série “Projeto para um Brasil Novo”, realizado na noite da última quarta-feira (25) e transmitido pelo canal do YouTube da SBPC. O objetivo da série é formular um documento com compromissos que devem ser firmados por políticos em prol do desenvolvimento da Ciência, Tecnologia e Informação.

O evento contou com a mediação de Maria Filomena Gregori, professora livre-docente do Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas  (Unicamp), e com a participação de Cleber Santos Vieira, docente do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História e do Programa de Pós-graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência e membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); Joana Maria Pedro, professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Joziléia Daniza Jagso Kaingang, da Articulação dos povos indígenas do Sul; e Nilma Lino Gomes, professora titular e emérita da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Iniciando os diálogos, o professor Cleber Santos Vieira trouxe um olhar ao passado recente do movimento político brasileiro. “É importante sinalizar que nós avançamos do ponto de vista de marcos regulatórios, de uma legislação, normas, portarias, resoluções, projetos de leis e decretos. É possível dizer que possuímos, em termos de ação, um conjunto importante de legislação que visa combater as desigualdades raciais e sociais. Esse conjunto normativo vem de resposta da sociedade, da comunidade negra politicamente organizada, que desde sempre pontuou a necessidade de reparação, de ações compensatórias para superar os danos existentes da escravidão. E quando nós pensamos no campo do que foi construído e que foi efetivamente implementado, aí nós podemos pensar naquilo que ainda precisamos avançar e, nesse momento, também precisamos resistir.”

Entre os destaques, Vieira apontou a importância do Estatuto da Igualdade Racial. “O Estatuto traz no seu artigo 12⁰ um capítulo muito importante que fala sobre a pós-graduação e a possibilidade dos órgãos federais, estaduais e municipais de fomento à pesquisa e, portanto, à produção científica, de estimularem produções dos pontos de vista temático e de financiamento para linhas de pesquisa relacionadas à história e cultura afro-brasileiras, africanas e indígenas, e também no campo das relações étnico-raciais. Isso é muito importante, porque a gente está falando de um Estatuto, um documento legal, que foi construído a duras penas, amplamente debatido pela sociedade brasileira, rigorosamente debatido na Câmara dos Deputados, no Senado Federal, foi aprovado, sancionado e está em vigência, e tem que ser pensado como uma conquista da nossa população”, destaca.

Para a integrante da Articulação dos povos indígenas do Sul, Joziléia Daniza Jagso Kaingang, o olhar ao passado é necessário para traçar um caminho que não pode ser regredido. “Pensando a partir da Constituição Federal de 1988, eu acho que nós avançamos muito na construção de políticas públicas para povos indígenas e para a população negra, especialmente na primeira década do século XXI. O debate sobre as políticas de ações afirmativas, o ingresso de estudantes indígenas nas universidades pensado antes da Lei de Cotas foi um avanço importante, e a própria implementação da Lei de Cotas deu esse start para nossa presença, para rodearmos a universidade. Assim como nós estamos pensando e ouvindo muito a partir de um ‘aquilombamento’, a gente também diz que tem ‘aldeado’ os espaços de ensino, de pensamento, de criação, de debates e de construção de um pluralismo de ideias.”

Joziléia destaca que a ideologia eurocêntrica segue tendo espaço desde a colonização, principalmente no sentido de reduzir, dominar ou conduzir os povos indígenas a uma situação de inferioridade, algo que vem sendo rompido com essa população ocupando cada vez mais espaços. E, para não retroceder, é necessário destacar as conquistas das políticas inclusivas.

“Nesse momento nós precisamos retomar essas discussões das políticas de ações afirmativas. Por quê? Porque nós vivemos um momento de intenso debate e contestação dos nossos ideais e dos nossos planos. Então, iniciar novamente um debate nesses 10 anos da política da Lei de Cotas e querer ouvir e ver o que nós avançamos é importante pra gente dizer à sociedade brasileira que sim, mulheres e não-mulheres, indígenas e não-indígenas, tiveram um avanço, uma contribuição extremamente importante nesses dez anos. Não há mais como negar essa nossa contribuição, negar que o acesso a vagas no ensino superior dá uma resposta extremamente positiva para os nossos povos.”

Corpos e direitos

Professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Joana Maria Pedro destacou em sua fala os direitos aos corpos das mulheres e, consequentemente, a regularização do aborto.

“Não é possível que mulheres continuem sendo presas por recorrerem ao aborto e que pessoas mal-intencionadas continuem enriquecendo fornecendo aborto clandestino. Como podemos exigir que uma pessoa carregue dentro de si uma gravidez não desejada? É disso que se trata. De 100 internações, somente uma configura um caso previsto em lei. Entre 2018 e 2019 foram 721 mortes de mulheres por abortos. As que mais morrem são pretas e pardas, segundo dados do DataSus. Portanto, essa questão tem classe e tem raça.”

Para a especialista, o Brasil e outros países que viveram períodos de ditadura militar não puderam presenciar a revolução sexual de outras nações, e ainda carregam um conservadorismo enraizado em visões de corpos e de direitos das mulheres.

“Sim, o aborto é uma questão de saúde pública, não só em relação à mortalidade, mas também em razão das sequelas que uma pessoa que precisa fazer um aborto clandestino pode ter. Por exemplo, medicamentos falsificados, introdução de objetos pontiagudos, introdução de medicamentos caseiros no útero, quedas provocadas, remédios que adoecem a mulher e pretendem inviabilizar o feto. Tudo isso sim pode deixar sequelas, além da morte. E essas informações de agora são resultados de entrevistas que eu fiz. Além disso, a criminalização não está reduzindo o aborto clandestino, a criminalização apenas aumenta o desespero de uma mulher que se descobre grávida”, alertou.

Encerrando os diálogos da noite, a professora titular e emérita da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Nilma Lino Gomes ressaltou que o Brasil já teve tempos de políticas de igualdade Racial e de gênero, principalmente entre os anos.2003 a 2016, entre elas o Conselho Nacional de Promoção à Igualdade Racial, o Decreto 4887/2003, que regulamenta demarcação e reconhecimento das terras quilombolas e a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

“Se nós temos políticas de direitos, em especial a mulheres, negros e indígenas, logo nós temos a possibilidade desses sujeitos viverem com maior dignidade, com igualdade, justiça social, e que caminhem com a maior representação e representatividade em espaços de poder de decisão da nossa sociedade. Se nós não temos essas políticas, esses sujeitos e sujeitas ficam entregues à sua própria sorte e à sua própria luta, e os movimentos sociais acabam cumprindo parte das obrigações do Estado na denúncia, na proposição e na realização de ações. Com todos os desafios, essas políticas caminham no avanço de direitos, criando oportunidades iguais numa sociedade desigual”, conclui.

Compromisso político é objetivo de série de seminários

Criada pela SBPC, a série “Projeto para um Brasil Novo” tem como objetivo exigir dos atores que desejam ingressar ou permanecer no cenário político após as eleições de 2022 o comprometimento com as demandas da CT&I. Após a realização dos debates, um documento de diretrizes será redigido pela SBPC e entregue para assinatura dos candidatos.

“O objetivo dessa série de seminários é chegarmos em propostas concretas para apresentar aos candidatos. Nós queremos ver quais candidatos, não só os à Presidência da República, mas também ao Legislativo e aos Governos dos Estados, se comprometem com as pautas, para que possamos cobrar eles depois, o que, por sinal, nós tivemos que fazer na última terça-feira (24/05), porque uma proposta de ementa constitucional acabando com a gratuidade do ensino superior público foi apresentada ao Congresso justamente por um deputado federal de São Paulo que havia assinado o documento da SBPC há quatro anos se comprometendo, entre outras coisas, a defender a gratuidade do ensino público. Então, com esse documento, nós pretendemos que seja realmente pra valer, nós queremos o cumprimento dessa palavra que foi dada. Mas, para além disso, para além do lado que está ligado à eleição, a própria razão de ser da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência é a defesa do conhecimento rigoroso, o que acaba implicando não só à ciência, mas cultura, saúde, educação, tecnologia, defesa do meio ambiente e inclusão social. E mais do que nunca, o Brasil precisa de inteligência, que as pessoas que fazem pesquisas, que militam pela elaboração na prática daquilo que foi teorizado, que elas engajem pelo desenvolvimento brasileiro”, explicou o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro.

Entre os próximos assuntos a serem abordados estão “Mudanças climáticas”, “Questão indígena”, “Diversidade de gênero e raça” e “Cultura”. O primeiro seminário refletiu sobre “Ciência, Tecnologia e Inovação”, o segundo “Educação básica”, o terceiro, “Educação superior”, o quarto, “Pós-graduação”; o quinto tratou do tema “Saúde”, o sexto trouxe apontamentos acerca do “Meio Ambiente”, o sétimo sobre “Direitos Humanos” e o oitavo sobre “Segurança Pública“.

Confira aqui o último seminário realizado, sobre “Diversidade de gênero e raça“.

Rafael Revadam – Jornal da Ciência