Novos cortes desenham “quadro sombrio” para a ciência brasileira

Bloqueios bilionários nos orçamentos do MCTI e MEC causarão danos irreversíveis à educação e ao desenvolvimento do País, alertam especialistas

A esperança de que este ano seria um pouco menos traumático para a ciência brasileira não demorou a ser rechaçada pelo governo federal. Mais da metade dos recursos que estavam previstos no Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) para serem investidos em pesquisa neste ano foram recentemente “bloqueados” pela equipe econômica do governo, sob a justificativa de evitar um estouro do teto de gastos do orçamento federal. De um total de R$ 4,5 bilhões de recursos não reembolsáveis disponíveis no orçamento do fundo, apenas R$ 2 bilhões poderão ser efetivamente empenhados — uma redução de 55% na principal fonte de recursos para a ciência no País atualmente. As universidades federais, que são as principais instituições de pesquisa do País, também foram duramente penalizadas, com um “bloqueio” de R$ 1,6 bilhão no orçamento do Ministério da Educação.

“É evidente o ataque do governo federal à ciência brasileira”, protestou a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), logo que tomou conhecimento dos cortes, ainda no fim de maio. “Todo esse ataque que está sendo realizado à ciência e à educação (…) parece ter um mote, um propósito, muito mais de atrasar o Brasil do que avançar o Brasil”, disse o professor da Universidade de São Paulo e atual presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, na abertura de um evento de repúdio aos cortes, realizado nesta terça-feira (21), com a participação de vários ex-ministros das áreas de ciência, educação e economia. “Teremos que atuar muito na reconstrução do País após esse período marcado pelo negacionismo, marcado por uma desqualificação da ciência e da cultura.”

“O quadro é muito sombrio”, resumiu a professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader, em sua participação no evento. “Nenhum governo, mesmo que eleito, tem o direito de destruir uma nação. E o que está acontecendo é uma destruição.”

O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) foi, de longe, o mais penalizado dentre todas as pastas do Executivo. O valor total bloqueado chega a R$ 2,9 bilhões, segundo dados apresentados pelo secretário-executivo do ministério, Sergio Freitas de Almeida, em uma audiência na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços da Câmara dos Deputados, em 2 de junho. Isso equivale a mais de 40% do orçamento discricionário da pasta aprovado para este ano na Lei Orçamentária Anual (LOA), de R$ 6,8 bilhões.

O bloqueio afeta todas as instituições científicas do País — incluindo a USP e outras universidades públicas estaduais, não apenas federais —, que dependem em maior ou menor grau de recursos do MCTI para suas atividades de pesquisa. Além do FNDCT, que era a grande esperança da comunidade científica para começar a reverter o colapso orçamentário imposto ao setor nos últimos anos, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principal agência de fomento à ciência do governo federal, também sofreu um bloqueio de R$ 196 milhões em seu já diminuto orçamento.

Almeida minimizou o problema em sua apresentação na Câmara, dizendo que o bloqueio representava “um mero impedimento de notas de empenho”, e não um corte ou contingenciamento de recursos. “Nossa visão é de que isso é temporário e vai ser recomposto ao longo de exercício”, sem prejuízo às atividades de pesquisa, afirmou o secretário-executivo do MCTI. Ele ressaltou que o ministério empenhou cerca de R$ 2 bilhões do FNDCT nos primeiros cinco meses deste ano — “o que, por si só, já é uma diferença significativa em relação ao ano passado, quando teve R$ 1 bilhão”, afirmou.

A dissonância entre a tranquilidade otimista do ministério e a indignação pessimista da comunidade científica é gritante. Pesquisadores têm pouca ou nenhuma esperança de que esses bloqueios serão revertidos de livre e espontânea vontade pelo governo, a tempo de os recursos serem devidamente executados antes do fim do ano.

O uso do termo “bloqueio”, em vez de contingenciamento, é a forma que o governo encontrou de driblar mais uma vez as barreiras da Lei Complementar 177/2021, que desde o ano passado proíbe o contingenciamento de recursos do FNDCT. Na avaliação das entidades científicas, porém, tudo não passa de uma artimanha semântica, visto que o resultado prático do bloqueio é exatamente aquele que a nova lei se propõe a evitar: a indisponibilidade de recursos previstos no orçamento.

Para o economista Fábio Guedes Gomes, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal) e secretário-executivo da Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento Brasileiro (ICTP.br), trata-se de uma “situação dramática de destruição do sistema de conhecimento brasileiro”, que, se não for revertida no curto prazo, terá prejuízos “enormes e irreversíveis” para a sociedade brasileira. “Podemos chamar essas medidas de medidas burras, que não levarão o país a lugar nenhum”, criticou ele, no evento do dia 21, ressaltando que o orçamento de Ciência e Tecnologia é o menor da Esplanada dos Ministérios e, mesmo assim, foi o que sofreu o maior corte.

Dados compilados pela SBPC mostram que o orçamento de Ciência e Tecnologia do MCTI, que já vinha caindo desde 2016, despencou nos primeiros três anos do governo Bolsonaro. Para este ano, a expectativa era de recuperação, graças à liberação de recursos do FNDCT, mas grande parte desse ganho acaba sendo anulada pelo novo bloqueio.

Educação em crise

O segundo ministério mais prejudicado pelos bloqueios foi o da Educação (MEC), com impacto direto sobre o orçamento das universidades federais, que são responsáveis por grande parte da formação de cientistas e da produção de ciência e tecnologia no País. “O cenário que estamos vivendo é bastante grave”, disse o economista Marcus David, reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Segundo ele, antes mesmo do bloqueio, o orçamento aprovado para as 69 universidades federais do País neste ano (cerca de R$ 6 bilhões) era menos da metade do orçamento de 2015, e 20% menor do que o orçamento de 2019. Desse total, cerca de R$ 218 milhões encontram-se bloqueados, segundo dados da Andifes.

“As universidades iniciaram 2022 já com um desafio muito complexo”, disse David, no evento da SBPC. E completou: “Não bastasse esse imenso desafio, nossos problemas foram agravados com o anúncio do bloqueio realizado em nossos orçamentos.” Várias universidades federais já alertaram que não terão recursos suficientes para funcionar plenamente até o fim do ano. “A situação que ocorre a partir desse bloqueio é de uma total inviabilização de operação das nossas instituições já no segundo semestre deste ano”, destacou o reitor da UFJF.

O fato de o MEC e o MCTI terem sofrido os maiores bloqueios entre todos os ministérios, segundo David, “não é uma coincidência”, mas reflexo de uma “política muito equivocada” do governo federal, que insiste em não enxergar a importância da educação e da ciência para o desenvolvimento social e econômico do País.

O professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), Odir Dellagostin, também lamentou que a comunidade científica e acadêmica precise gastar tanta energia “lutando por algo que é tão evidente”. “Todos que têm um pouco de conhecimento reconhecem que educação, ciência e tecnologia são o único caminho para a evolução da sociedade, o único caminho para garantir a soberania (do País)”, disse. “Estamos desconstruindo o que foi construído com muito esforço, muito trabalho, muita dedicação.”

Segundo ele, mesmo que um novo governo, favorável à ciência, vença as eleições no fim do ano, ainda levará muito tempo para “colocar a locomotiva de volta nos trilhos”, viajando na mesma velocidade de antes. “Estamos causando um prejuízo que não se reverte de uma hora para outra”, disse. “Os recursos humanos que estamos deixando de formar (…), esses nós perdemos, nós não recuperamos mais.”

“Educação é a única forma de salvar este país da pobreza, da insegurança e da desigualdade”, disse o presidente do Conselho Superior da Associação Nacional de Pesquisa, Desenvolvimento e Engenharia das Empresas Inovadoras (Anpei), Pedro Wongtschowski, em um depoimento gravado para o evento. “Os cortes estão no caminho contrário. Digamos não aos arautos do atraso.”

Jornal da USP