“O Brasil não abre mão da democracia”

Em discurso na abertura da 74ª Reunião Anual da SBPC, o presidente da entidade celebrou a volta do encontro presencial

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A seguir, a íntegra do discurso do presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, por ocasião da abertura da 74ª Reunião Anual:

Boa noite a todas e a todos. Eu quero saudar na pessoa da reitora Márcia Abraão e do ministro Paulo Alvim todas as pessoas que fazem parte da mesa que essa noite está nos proporcionando falas tão interessantes, tão instigantes. Vou procurar na minha fala não repetir o que já foi tão bem-dito sobre a necessidade de termos orçamentos íntegros para educação, de termos o respeito à educação, a ciência e tecnologia como pilares da construção do país e também as falas instigantes e brilhantes dos nossos homenageados e dos que o saudaram. Vou procurar não repetir tudo isso.

Mas nós estamos muito orgulhosos de conseguir voltar ao presencial depois de dois anos de pausa. Estamos muito contentes com isso e é claro que mantemos as conquistas do virtual, tanto que muitas das nossas sessões serão feitas ou virtualmente – ainda por uma precaução de saúde -, mas também serão transmitidos para que todos possam acompanhar mesmo que não possam vir aqui.

Quero lembrar que nós chamamos de festa da ciência o nosso encontro. Esse termo tem tudo a ver, não sei todos sabem, com o significado da palavra filosofia,  que é a área a qual pertenço. Filosofia não surge como arrogância, mas surge como modéstia. A ideia dos primeiros filósofos, sete sábios da Grécia como as vezes são chamados – Tales de Mileto, Pitágoras, Heródoto, Parmênides, Anaxímenes e Anaxágoras. A ideia deles é que eles não são donos dessa sabedoria. Eles não são donos da sofia, eles são amigos da sabedoria.

Então, eles são pessoas que procuram cultivar essa amizade. E isso que nós fazemos com a ciência. Nós não somos donos da ciência, ninguém aqui é a dona da verdade. Nenhum pesquisador, por brilhante que seja, pode ser dono da verdade. A verdade está sempre temporária, sempre em sursis, porque pode mudar.

Mas justamente por esse sentido sempre de progresso da ciência é que é tão importante a ciência para o desenvolvimento econômico social. E esse é um ponto crucial para o Brasil hoje, uma grande lição, porque nesses anos perdemos muito mais vidas do que teríamos perdido se o Brasil tivesse escutado a ciência, se o Brasil tivesse tomado os cuidados necessários para proteção das pessoas com distanciamento, máscara, que ainda são necessários.

Quero lembrar que a covid ainda está entre nós, está chegando a varíola dos macacos, temos uma guerra mundial ou uma guerra de impacto mundial, em suma, muitas coisas negativas estão somando. Se não tomarmos cuidado com isso, imagine o que será? Temos duas pandemias ao mesmo tempo, que é um risco não negligenciável.

Então, por isso tudo, é que a Ciência é tão importante. E por isso também o Brasil esses anos deu uma lição da sociedade ao governo. Foi a sociedade que lutou pela vacina, que maciçamente foi aos postos de vacinação numa proporção às vezes maior do que país europeus, mesmo quando o governo não dava devido importância à vacina ou a tudo isso.

Eu quero começar pela prioridade zero do Brasil hoje, que é a defesa da Democracia. Lembremos que o nosso tema, que foi tão comentado pela mesa – Ciência, Independentes, Soberania Nacional -, mas não teremos soberania nacional hoje se não tivermos soberania popular. Soberania nacional é independência, o Brasil é um país independente? Tem que conquistar. Isso é futuro, não é uma coisa dada no passado. Poucos países do mundo têm independência real, mas a única legitimidade para soberania nacional ou para independência está quando todo poder emana do povo e é exercido por ele ou em seu nome. De outro jeito não temos.

A SBPC sempre defendeu a democracia. Assim foi na ditadura, quando nossas reuniões anuais eram um momento de respiro e de discussão de propostas para o Brasil que foram sendo constituídas a partir do fim da ditadura, da Constituinte para qual a SBPC ganhou importante colaboração  – e eu quero lembrar que amanhã lançaremos o livro sobre a SBPC e a Constituinte. Hoje na Folha de São Paulo, saiu uma bela foto do nosso presidente de honra, Ennio Candotti entregando ao presidente da Constituinte o Ulysses Guimarães as contribuições da SBPC para a Constituição. Porque lá estão educação, saúde, mas também a proposta que é nossa também, que fazemos nossa, que está no artigo 3º: o Brasil quer ser uma sociedade justa, solidária, sem preconceitos e sem pobreza. Tudo isso é extremamente importante para o nosso futuro e tem que ser preservado.

Os governos podem tentar isso de maneiras diferentes, uns de uma forma mais liberal, outros de uma forma mais socialista, mas de qualquer forma esse projeto foi esculpido na pedra da Constituição pelos constituintes. Esse projeto tem que orientar a ação de qualquer governo bem como o que está não só nos primeiros artigos da Constituição – Direitos Humanos, Direitos Sociais, Direitos Trabalhistas -, mas que está nos últimos capítulos dela, onde, por dezenas de artigos, se enumera o que é fundamental para a educação, saúde, cultura, proteção dos indígenas, respeito aos quilombolas, respeito à mulher, enfim, uma quantidade grande de valores que nós fazemos nossos que são da mais alta importância.

A SBPC, assim, participou da luta pela democracia, da luta pela Constituinte, da luta pelo impeachment do primeiro presidente eleito após o longo eclipse democrático. Assim tem sido, assim é e assim será. Continuaremos lutando nessa direção.

Por isso mesmo damos nesta reunião ênfase especial à questão das eleições. Teremos sobre as urnas eletrônicas uma mesa, um livro que já está disponível para download gratuito na nossa página da internet e teremos também um debate. E estamos disponibilizando a nossa página um abaixo-assinado que foi aprovado pela diretoria na sexta-feira, pelo conselho da SBPC ontem e que desde às seis da tarde está na plataforma Change. É um abaixo assinado que eu vou dar leitura agora e que vamos entregar ao Tribunal Superior Eleitoral, e ao Supremo Tribunal Federal.

Manifesto pelas Eleições e pelas Urnas Eletrônicas

Os abaixo-assinados, membros da diretoria e do conselho da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, seus secretários regionais sócios e amigos da ciência em geral manifestam por esse documento seu apoio à democracia, ao sistema eleitoral de renovação de governantes e representantes e às urnas eletrônicas que tem funcionado muito bem, há décadas, neste País.

Sem democracia e sem a participação de todos e todas, a vida social se empobrece.

(Posso complementar: a vida social fica pobre, sórdida, bruta e cruel.)

Por isso mesmo repudiamos qualquer tentativa no sentido de violar a democracia ou de tumultuar o processo eleitoral que deve ter continuidade no absoluto respeito à Constituição, às leis e à Democracia, porque tanto custou em vidas e esforços ao povo brasileiro para serem instituída.

Brasília 24 de julho de 2022.

Reitero: todos estão os convidados, todas estão convidadas para assinarem esse documento que entregaremos aos ministros Carlos Veloso, aposentado ex-presidente do TSE, Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, ex-presidente do TSE, na mesa redonda sobre urnas eletrônicas, no dia 29 de julho, último dia de atividades da Reunião, sexta-feira, às 13 horas.

Também devo lembrar que convidamos os três candidatos com maior intenção de votos a comparecerem aqui em datas diferentes. Então, até o momento tivemos resposta positiva do candidato Ciro Gomes, resposta positiva, mas sem confirmação de data ainda do candidato Luiz Inácio Lula da Silva e ainda não temos resposta do candidato presidente Jair Bolsonaro. Mas o espaço está aberto para eles se fazerem presentes aqui na Reunião Anual para que nós possamos entregar a eles o documento que representa as propostas da SBPC e da comunidade científica brasileira para os próximos anos.

Basicamente, como foi dito antes, muita ciência para a democracia. Nós não podemos ter democracia hoje sem ciência, não podemos ter desenvolvimento econômico e social sem ciência, sem cultura, sem educação, sem saúde, sem desenvolvimento econômico e social, que necessita de inteligência embutida. Precisamos de conhecimento rigoroso.

Por isso tudo, a inclusão social é uma premência brasileira, que dê aos mais pobres, aos afrodescendentes, aos indígenas, às mulheres e pessoas com deficiência absoluta igualdade, com aqueles que têm mais direitos ao longo da vida. Outra urgência é a defesa do meio ambiente, tão simbolizada pela Amazônia e que é um dos seis biomas brasileiros, constituindo o maior reservatório junto com outros países da América do Sul, de biodiversidade do mundo, tendo um manancial de riquezas que podem ser exploradas no absoluto respeito aos povos da floresta. Lembro, e vamos nominar já o jornalista Dom Philips e o sertanista Bruno Pereira, assassinados recentemente. Isso é absolutamente importante, a gente preservar a nossa biodiversidade e entender que a floresta vale muito mais de pé do que derrubada, ela não vale quase nada quando vira carbono.

Ela vale muito quando está de pé lá onde crescem os primatas, dos quais falou o querido professor Milton Thiago de Melo, cujo ânimo, cujo entusiasmo invejamos todos e admiramos. Ela vale muito também no combate à fome, como foi ressaltado pelo professor Isaac Roitman e também pelo professor Milton. Então nós precisamos fazer tudo isso entendendo a importância da floresta de pé, dos povos da floresta e do que trará para a natureza.

Não teria tempo para dizer tudo que esta reunião traz para o Brasil neste momento tão difícil de nossa história. Mas não vamos desistir do Brasil, nem do que a ciência e a educação lhe trazem. Estamos juntos e reunidos aqui para repudiar toda a espécie de negacionismo. O negacionismo da ciência, o do conhecimento, o da saúde e o ambiental e, sobretudo, da ética e dos direitos humanos.

Quando a nossa SBPC foi criada, em 1948, recém havia terminado a Segunda Guerra Mundial e predominava a convicção de que a maior descoberta científica – ou talvez invenção do século XX – teria sido a bomba atômica. Durante muitos anos se pensou isso e a associação entre os esforços bélicos ou, simplificando, entre a guerra e a ciência foi muito forte no Século XX e continua presente. Vemos isso na guerra da Ucrânia. Temos a sorte de sermos parte do único continente populoso no mundo que não está devastado pela guerra. A linha tênue que separa Europa e Ásia está devastada pela guerra na Ucrânia, a África tem inúmeras guerras, nós estamos relativamente poupados disso. Porém a ciência acaba sendo utilizada perversamente para a guerra. Contudo, menos de dez anos depois da Segunda Guerra se descobriu o DNA, ou melhor se descobriu a estrutura do DNA.

Mais tempo vai passando e nós vemos que o século 20 representou um avanço gigantesco nas ciências da saúde, nas ciências da vida e sobretudo no efeito que isso traz para a saúde de todo mundo. Eu sempre lembro: a expectativa de vida de 40 anos em média no começo do século XX, e a expectativa de vida de 70, 80 anos hoje em dia e para quem está nascendo agora. Então, em cem anos dobrou expectativa de vida.

A qualidade de vida avançou tremendamente. A medicina teve avanços notáveis, a saúde coletiva, muitas outras áreas que juntam ciências biológicas, ciências humanas e inclusive ciências exatas e engenharia. Todo esse avanço notável desde 1900, em 120 anos, é algo que mostra o poder da ciência. Mas mostra também que a pesquisa científica, embora uma parte dela continue voltada para a guerra, assumiu uma vocação para a paz.

Então eu diria hoje que a nossa prioridade não é a morte. A nossa prioridade é a vida, é fazer a vida ser mais longa e ser melhor, ser mais positiva.

Essa Reunião Anual é uma espécie de grande salão de discussões de como todo esse conhecimento pode melhorar a vida de todos nós. De todos nós, das pessoas que estão ausentes. Aqui nós não estamos defendendo os interesses dos cientistas. Nós estamos defendendo os interesses da sociedade que podem ser proporcionados pela ciência.

Eu quero ainda falar um pouquinho sobre as comemorações sem ser muito redundante, o que já foi dito sobre Darcy Ribeiro, a UnB, a Semana de Arte Moderna, eu vou falar um pouquinho só da Independência. Nós vamos tratar da Independência sobre dois focos: um é o histórico, mostrar que Independência não foi de uma colônia portuguesa chamada Brasil que virou um império chamado Brasil. Foi de duas colônias portuguesas, a colônia do Brasil e a colônia do Grão-Pará que se uniram depois de 1822 para formar, sim, o que foi o Império do Brasil. E mais tarde, quase cem anos depois, juntou-se o Acre. O Brasil hoje tem vários componentes e nós vamos tratar desses três componentes básicos.

Também vamos discutir como a independência, infelizmente, não foi nada positivo para os negros, para os indígenas e para os pobres em geral. Quer dizer, nós tivemos um fracasso nesses pontos, o Brasil não trouxe nada de bom para eles e isso com aquela hipocrisia típica dos tempos passados em que a Constituição do Império em momento nenhum disse que mulheres não votam, apenas não as menciona. Ou em momento nenhum disse que há escravidão, apenas salta e diz que vai ser mantida propriedade. Essa hipocrisia nós temos que romper. Por isso também temos que tratar disso. Mas mais que tudo, devemos pensar que independência é um projeto, não é um dado. Não é algo que está no nosso passado.

Não estamos apenas fuçando arquivos com toda a importância que isso tem, sou um fã de História, adoro ler história, mas não estamos apenas vendo o que aconteceu. Estamos discutindo o que tem que acontecer, o que depende de nós, o que de repente nossos jovens pós-graduandos, aqui representados pela Flávia (Calé), das crianças que aqui estão, como as duas meninas que estavam dançando enquanto se cantava o hino nacional – até as filmei um pouco porque eu fiquei absolutamente encantado por isso.

Então, todos esses pontos são muito importantes para nós. Finalmente, eu queria dizer a vocês, dar um pequeno depoimento: nas páginas gloriosas da SBPC, está a proibição, pela ditadura militar, da Reunião Anual que ia ser no Ceará em 1977. E essa proibição causou uma verdadeira revolta na comunidade acadêmica brasileira. Era o mesmo ano em que o presidente, o ditador Geisel, fechou o Congresso, editou o pacote de abril. E, no entanto, a comunidade científica fez suas assembleias. Eu participei da assembleia na USP e no dia seguinte, às nove da manhã, estava na porta da SBPC, na Rua Cardeal Arcoverde, perto de onde eu morava, para fazer minha inscrição. Me inscrevi naquela época. Muito menos tempo do que o professor Milton que está desde 1950, do que o professor Claudio Gilberto Froehlich, da Universidade de São Paulo, que é nosso sócio desde 1949, o mais antigo de nossos sócios ativos e que também foi homenageado – só quero dizer isso como interessante curiosidade – pelo nome de um besouro que chama Claudiella.

Mas a comunidade foi capaz de indignar-se, de se manifestar e, graças ao Cardeal Arns, de fazer a sua reunião anual na PUC-SP e mais tarde no Ceará. E eu queria terminar pedindo a vocês cinco vivas:

Vamos primeiro dar um viva à Universidade Brasília: viva a UnB!

Vamos dar agora um viva à Ciência: viva a Ciência!

Agora um viva à SBPC, na sua 74ª Reunião Anual: viva!

Um viva à democracia: viva!

E um viva ao Brasil: viva nosso país!

Muito obrigado a todos.

Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC

Brasília, 24 de julho de 2022