A nação brasileira completa 200 anos

Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-ministro da Fazenda, Administração Federal e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia, foi convidado pela SBPC para proferir a conferência de encerramento da série de debates sobre o Bicentenário da Independência nessa terça-feira, 7 de setembro. Em sua fala, defendeu que “apenas uma nação forte pode levar o Brasil ao desenvolvimento e reduzir as desigualdades”

07.09.22 - conferência

Confira o discurso do ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira:

A nação brasileira completa 200 anos

Apenas uma nação forte pode levar o Brasil ao desenvolvimento e reduzir as desigualdades

Aula magna na comemoração dos 200 anos de independência do Brasil organizada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, SBPC, 7 de setembro de 2022.

A nação brasileira comemora hoje 200 anos de independência, mas esses anos ficaram longe de serem de independência plena. Até 1930 – o Brasil foi formalmente uma nação; na prática, era uma sociedade semicolonial. Estava submetida aos interesses e à cultura superior, primeiro do Reino Unido e da França, e depois, dos Estados Unidos. A Revolução de 1930 foi a segunda independência do Brasil. Foi a partir de então que o povo brasileiro se transformou em nação, e que uma coalizão de classes desenvolvimentista formada por empresários industriais, trabalhadores e burocratas civis e militares definiram um projeto nacional de desenvolvimento.

Ao contrário do que aconteceu com os países desenvolvidos, o Brasil primeiro construiu seu Estado e depois sua nação. A construção do Estado aconteceu durante o Império no qual o Estado adotou o modelo parlamentarista europeu combinado com o poder moderador do monarca; foi completada durante a Primeira República, que adotou o modelo do presidencialista americano.

Mas esse grande Estado não tinha uma nação. Foi só a partir da Revolução de 1930, realizada sob a liderança de Getúlio Vargas, que a população brasileira se transformou em uma nação – uma sociedade política que tem uma história comum, um objetivo comum de desenvolvimento econômico e social, e seus membros concordam em combinarem a defesa dos seus próprios interesses com a defesa dos interesses de todos.

Mas essa construção da nação ficou incompleta. Ficou incompleta em primeiro lugar porque a nação brasileira é uma sociedade mestiça formada pelo indígena, o negro e o branco, e, no entanto, suas elites insistiam em considerá-la branca. A crítica desta atitude começou há muitos, mas foi só recentemente que a consciência da nossa natureza mestiça se tornou dominante. Não sei qual foi o fato histórico novo que propiciou essa mudança. Talvez tenha sido o sufrágio universal de 1985 que surgiu com a transição do Brasil para a democracia. Certamente contribuiu para isso a política de quotas nas universidades. Essa política representou um grande avanço social e político. E é preciso não esquecer a definição de reservas indígenas, que não resolveu todo o problema, mas representou um grande avanço da causa indígena no Brasil. Hoje o movimento social e político dos pretos e dos indígenas é forte e está contribuindo para a construção da nação brasileira.

Em segundo lugar, a construção da nação brasileira ficou incompleta porque o projeto nacional de desenvolvimento que é essencial para que a nação exista – esse projeto iniciado nos anos 1930, foi interrompido no final dos anos 1980, quando o Brasil abandonou sua estratégia desenvolvimentista e voltou a se subordinar ao Norte Global e o liberalismo econômico por ele pregado.

***

Entre 1930 e 1980, o objetivo principal da nação foi promover o desenvolvimento econômico e a economia brasileira registrou taxas de crescimento extraordinariamente elevadas. Nesses 50 anos, o Brasil realizou sua revolução nacional e industrial; em outras palavras, sua revolução capitalista. Esse foi um período de industrialização acelerada que levou ao surgimento de três grandes classes comprometidas com o desenvolvimento econômico: os empresários industriais, os trabalhadores e a burocracia pública. Esse foi um tempo no qual os brasileiros foram desenvolvimentistas ao invés de liberais e reconheceram que o Estado tem um papel fundamental no desenvolvimento econômico. Os anos 1980 foram anos de crise.

Nos 60 anos de desenvolvimentismo, o principal instrumento que os países subdesenvolvidos usavam para se industrializar eram as tarifas sobre a importação de bens manufaturados. Tarifas que eram legítimas e necessárias não apenas porque o país precisa de um certo tempo até amadurecer cada setor industrial. Esse era um velho e bom argumento que, no entanto, se esgota no tempo. Mas surgiu um segundo argumento. Tarifas que eram e continuam a ser necessárias para neutralizar a doença holandesa. O Brasil só conseguiu se industrializar porque as tarifas aduaneiras neutralizaram a sua doença holandesa

Nesses 60 anos de desenvolvimentismo, os brasileiros se mostraram capazes de enfrentar a hegemonia ideológica do centro imperial que utilizava a ideologia liberal e a teoria econômica ortodoxa como instrumentos para bloquear a industrialização e o desenvolvimento dos países da periferia. Nessa ação foram apoiados pela teoria clássica do desenvolvimento ou desenvolvimentismo clássico – a primeira teoria econômica que criticou a teoria econômica ortodoxa e mostrou que desenvolvimento econômico é industrialização, é mudança estrutural, é sofisticação produtiva. Essa teoria e as respectivas políticas econômicas, que já estavam sendo implantadas no Brasil desde 1930, tornaram-se dominantes nos anos 1950. Foram partilhadas por políticos e economistas desenvolvimentistas, e resultam em um extraordinário crescimento econômico.

Nesses 60 anos de desenvolvimento e revolução capitalista, o Brasil se transformou profundamente. Em 1990 o Brasil se tornara um grande exportador de bens manufaturados, surgira uma classe trabalhadora organizada, uma grande classe média tanto burocrática quanto capitalista, e uma ampla e competente classe de empresários industriais.

Assim, no plano econômico, a nação brasileira caminhava a passos largos na sua própria construção, porque um projeto nacional é sempre um projeto de desenvolvimento econômico. Mas o Brasil permanecia um país autoritário, dominado por uma burocracia militar associada ao capitalismo local e ao capitalismo internacional. Depois de uma grande luta da classe média e da classe trabalhadora, o Brasil fez afinal, em 1985, sua transição para a democracia. Uma democracia que imediatamente se propôs ser uma democracia social, como a Constituição de 1988 deixou claro. Faltava, apenas, ser também uma democracia étnica, na qual houvesse lugar para as três raças, e não apenas para a raça branca.

Mas se os anos 1980 foram, no plano político, anos de progresso, no plano econômico foram anos de grave crise. O Norte Global havia no final dos anos 1970 feito a sua Virada Neoliberal – havia abandonado um desenvolvimentismo democrático e social que caracterizara os Anos Dourados do capitalismo e ingressado em um liberalismo econômico radical e autoritário sob o comando dos Estados Unidos. O país hegemônico logo transformou o processo de globalização que estava então em curso devido às mudanças tecnológicas que vinham ocorrendo no mundo em um projeto político – o projeto de abrir todos os mercados, de obrigar todos os países a adotarem o liberalismo econômico, de transformar o mundo que é redondo em um mundo plano sob o domínio americano, o projeto de levar os países do Sul Global a interromper sua industrialização, a parar de exportar bens manufaturados e, assim, parar de competir com os países ricos nessa área.

Essa política imperialista não foi consequência de qualquer maldade ou falha moral, mas do poder econômico e político que os países mais ricos detêm. Para impedir o processo de desenvolvimento dos países da periferia do capitalismo a principal “lei” que a ortodoxia liberal utilizava e continua utilizando era o modelo das vantagens comparativas do comércio internacional. Um modelo tão lógico quanto absurdo, porque a “lógica” em que está baseado são premissas irrealistas como, por exemplo, a premissa do pleno emprego, ou a da incapacidade de os países aprenderem.

O que podemos dizer sobre o projeto de globalização 40 anos depois? Em relação ao Leste da Ásia ele fracassou; esses países abriram suas economias, porque não precisavam de tarifas aduaneiras para a neutralizar a doença holandesa (desvantagem competitiva que não tinham), mas conservaram suas políticas desenvolvimentistas e cresceram extraordinariamente. Já na América Latina e no Brasil, esse projeto foi lamentavelmente bem-sucedido. Os países realizaram as reformas neoliberais, reduziram ou eliminaram as tarifas que neutralizavam a doença holandesa, sua indústria deixou de ser competitiva, e os países latino-americanos experimentaram 30 anos de quase-estagnação. Interrompeu-se, assim, a construção econômica da nação brasileira.

***

Ernest Renan, na célebre conferência que pronunciou em 1882, afirmou que “a nação é um plebiscito de todos os dias”, que “uma nação é uma grande solidariedade”. Nós, brasileiros, temos esquecido dessas simples verdades. Temos nos deixado levar pelo “soft power” de nações poderosas e profundamente nacionalistas que escondem o seu nacionalismo e condenam o nacionalismo dos outros.

O nacionalismo é a ideologia do estado-nação. É a ideologia que mantém fortes e coesas e solidárias as nações. É um nacionalismo que une enquanto o nacionalismo étnico separa as pessoas dentro da nação. Separa-as pela raça ao invés de separá-las pelo território ocupado e dá origem a grandes injustiças. É um nacionalismo que, por ser étnico, facilmente pode se transformar em violência. O que o Brasil precisa não é do nacionalismo étnico que divide, mas de uma integração étnica que une.

Uma nação só é livre e independente quando é autônoma no plano econômico e coesa no plano étnico-social. Mas as nações são muitas vezes nações incompletas, dependentes, não apenas porque o imperialismo as submete, ou o racismo a impede de se unir. Há uma terceira causa que está associada aos dois problemas, mas é diferente deles. Há na sociedade brasileira uma alienação nacional. Muitas pessoas são dependentes ou colonizadas; são incapazes de se identificar com os interesses da nação. Há em todas as profissões muitos brasileiros da melhor qualidade que não compreendem a importância do nacionalismo econômico ou desenvolvimentismo. Dizem, por exemplo, que “o nacionalismo está superado”, não vendo que o nacionalismo só será superado quando não existirem mais nação. Ou acreditam na retórica do Norte Global segundo a qual o nacionalismo se confunde com populismo. Ora, o populismo de governos liberais é mais frequente que o populismo de governos desenvolvimentistas. Essas pessoas caracterizadas pela alienação nacional se preocupam com a desigualdade social e étnica existentes no país e defendem os direitos humanos e se preocupam com o aquecimento global, mas não percebem que só uma nação forte, apoiada no nacionalismo econômico, será capaz de reduzir as desigualdades, garantir os direitos humanos, e contribuir para o controle da mudança do clima.

Nós vivemos em um mundo global no qual não são apenas as empresas, são também os estados-nação que competem entre si a nível mundial. Nesse quadro, o nacionalismo econômico é uma condição para que haja desenvolvimento econômico e social. O Brasil precisa de um nacionalismo econômico que rejeite as políticas liberais propostas pelo mundo rico e adote as políticas e reformas que interessam ao Brasil. Um nacionalismo econômico e bem pensado que não impeça os acordos e a necessária solidariedade internacional. As políticas que os países centrais – os Estados Unidos e os demais países ricos – recomendam que adotemos são política que interessam a eles, geralmente não interessam ao Brasil.

Enquanto na direita o nacionalismo é rejeitado por aqueles que temem uma nação solidária e forte, na esquerda é rejeitado por aqueles que colocam as suas esperanças na luta de classes e no socialismo. Essa é uma contradição que todos os progressistas enfrentam e para qual só existe uma solução: viver dialeticamente a contradição. Defender os direitos dos trabalhadores agora e a construção de uma sociedade socialista no futuro, ao mesmo tempo defender o acordo político – a coalizão de classes que promova o desenvolvimento econômico e o aumento dos salários.

***

Nas sociedades capitalistas a nação e o nacionalismo são incontornáveis. Eles estão no sangue de cada cidadão. O nacionalismo pode ser também literário, artístico ou desportivo. Esses são nacionalismos bem-vindos, mas não bastam. É preciso que o nacionalismo seja uma atitude política, que o seu objetivo seja um projeto nacional.

Há duas formas de organização econômica do capitalismo – a forma desenvolvimentista e a forma liberal. O desenvolvimentismo é a forma default de capitalismo. O capitalismo nasceu desenvolvimentista. As primeiras revoluções capitalistas – aquelas que aconteceram na Inglaterra, na França e na Bélgica – aconteceram no quadro do desenvolvimentismo – mais precisamente, no quadro do mercantilismo, que foi a primeira forma histórica de desenvolvimentismo. O Brasil, como todas as demais nações, realizou sua revolução industrial e capitalista no quadro do desenvolvimentismo. Um inimigo do nacionalismo é o populismo. Os bons governos são liderados por políticos populares. O populismo é uma distorção na qual tanto o desenvolvimentismo quanto o liberalismo podem incorrer.

Quando o Brasil se desenvolvia de maneira acelerada, nós tínhamos orgulho do Brasil. Desde que entrou em um regime de quase-estagnação, há quarenta anos, fomos perdendo esse orgulho. Hoje, governados por um líder populista de direita, fascista, temos vergonha de sermos brasileiros. O Brasil precisa hoje, mais do que em qualquer outra ocasião, reconstruir sua nação e encontrar o caminho do desenvolvimento.

A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência está hoje aqui reunida para comemorar os 200 anos da independência do Brasil. A SBPC é formada por uma comunidade de cientistas e de tecnólogos profundamente comprometidos com o desenvolvimento do Brasil – da sua ciência e da sua tecnologia. Por um breve momento eu estive à frente dessa comunidade, quando em 1999 fui ministro da Ciência e da Tecnologia. Eu aprendi então a admirar ainda mais essa comunidade. Mas digo sempre para suas figuras mais ilustre quando me encontro com elas. Vocês precisam também se interessar e defender uma política econômica voltada para os interesses nacionais. Vocês não são economistas, mas no mundo contemporâneo, em que a política econômica se tornou tão importante, todos temos que entender e opinar sobre as linhas básicas da política econômica do país.

Meus amigos, foi uma honra e um prazer ter sido convidado por vocês e por seu presidente, Renato Janine Ribeiro, para lhes falar neste dia tão importante. O Brasil preciso de nós, nós precisamos do Brasil. Viva o Brasil, viva o povo brasileiro.

O vídeo da sessão está disponível no canal da SBPC no YouTube neste link.

SBPC