Especialistas examinam os efeitos dos 21 anos de ditadura na sociedade contemporânea
Passaram-se cinco décadas, outras tantas se passarão e o golpe de 1964 permanecerá selando nossa realidade. Quem o diz é o saber científico acumulado em anos de artigos, livros publicados e projetos de pesquisa nas melhores instituições de ensino do país. Parte do que somos, do que poderíamos ser e do que jamais seremos está ligada à herança do regime militar no Brasil. De um lado, caminhamos para a sétima eleição presidencial democrática e podemos celebrar o fato de ter tido um professor exilado, um líder sindical preso na ditadura e uma guerrilheira presa e torturada ocupando o posto máximo da República. De outro, muito do que ainda nos falta como nação se deve a um Estado e a uma sociedade que não se desfizeram das amarras e armadilhas do passado. Os pesquisadores se debruçaram e prosseguem com afinco na análise dos impactos e consequências de um período que ainda rende inúmeras teses e dissertações, mas talvez jamais consigam responder a uma questão crucial: seremos capazes de um dia virar a página da história?
Em 2014, os brasileiros viram as cenas de barbárie da faxineira Claudia Silva Ferreira sendo arrastada por um carro da Polícia Militar, na zona norte do Rio, após ter sido baleada num fogo cruzado entre traficantes e policiais. “A tortura, os assassinatos e os desaparecimentos foram políticas de Estado na ditadura, mas a violência policial continua sendo praticada sistematicamente no Brasil”, critica o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, coautor de Modernização, ditadura e democracia: 1964-2010 (Objetiva, 2014). A gênese dessa violência une os porões da polícia do Estado Novo, os órgãos de repressão mantidos vivos na democracia de 1946 a 1964, os 21 anos de regime militar e a polícia e os paramilitares e milicianos dos nossos dias, explica o historiador, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A atual democracia poderia ter dado um basta nessa lógica, mas não o fez. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal recusou “abrir velhas feridas” ao se opor à revisão da Lei da Anistia. “1964 continua acontecendo a cada dia”, diz Teixeira da Silva.
Para um jovem nascido na democracia, talvez seja difícil relacionar a repressão da polícia do Exército com a institucionalização da violência e a militarização das polícias. Mas isso é um fato e também um campo de estudo. O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) foi criado em 1987 para investigar por que o Brasil que se redemocratizava manteve traços de uma herança autoritária e para refletir sobre os desafios que esse passado ainda apresenta para a consolidação do Estado democrático de direito. De lá para cá, as taxas de criminalidade explodiram dos anos 1980 aos 1990, sobretudo a de homicídios, e agora a sociedade se vê às voltas com o crime organizado. Há pelo menos duas gerações, a população deixou de enxergar a polícia como eficiente.
O sociólogo Sergio Adorno, coordenador do NEV-USP e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, lembra que na ditadura imperava o medo de falar. Nos anos 1970, Adorno era universitário e nas aulas de sociologia seus professores não podiam citar a palavra “marxismo”. A censura abafava o fenômeno da violência, que só se tornou bastante visível depois da saída dos militares. “As instituições encarregadas da aplicação de lei e ordem continuam adotando um tratamento autoritário para conter a violência e têm uma concepção da ordem que é inspirada na lógica da guerra”, explica. “O criminoso é um inimigo que deve ser extirpado.”
O NEV-USP é desde 2000 um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) da FAPESP. A Fundação tem financiado várias pesquisas sobre o tema, como a de uma investigação de Adorno sobre a continuidade do discurso autoritário no país, tendo como objeto de estudo o esquadrão da morte. Segundo ele, ali começou a firmar-se uma espécie de pacto com a opinião pública que tolera a matança de criminosos – ou suspeitos de terem cometido crimes – por agentes policiais como se fosse adequada política de segurança. O núcleo já realizou estudos sobre a impunidade penal, as consequências da permanência do perfil militar das polícias e a violação dos direitos humanos.
A cientista política Maria Helena Moreira Alves também se dedica a estudar os resquícios do golpe de 1964 sobre a doutrina de segurança nacional, ainda em pleno vigor em sua opinião. Ela entende que as instituições brasileiras continuam incapazes de dar respostas à democracia. E isso decorre do fato de que elas não se abriram para as outras classes sociais, mas se tornaram peças utilitárias para a preservação de poder das elites. A pesquisadora cita o Judiciário, os partidos, as polícias e a imprensa como algumas das instituições que falham em não representar os interesses da maioria da população. “Diferentemente do período da resistência, focada na luta armada de classe média, hoje as vítimas da violência são pobres, camponeses e os moradores das periferias, que desaparecem ou são silenciadas”, critica a autora de Vivendo no fogo cruzado (Editora Unesp, 2013), sobre a política de retomada dos morros e comunidades pelo governo do Rio. Irmã caçula do deputado Márcio Moreira Alves, cujo discurso desafiador no Congresso foi o estopim para a decretação do Ato Institucional Número 5 em 1968, Maria Helena publicou também Estado e oposições no Brasil: 1964-1984 (Vozes, 1984) e é professora aposentada da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
Presa em 1970, torturada nos porões do Doi-Codi do Rio de Janeiro, a historiadora e psicóloga Cecília Maria Bouças Coimbra defendeu tese de doutorado que foi publicada em livro já esgotado sob o título Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas “psi” no Brasil do “milagre”. Nesse trabalho, a pesquisadora mostra como testes eram aplicados por psicólogos para traçar o perfil dos chamados terroristas presos. O objetivo era usar esse perfil construído para intimizar (tudo está vinculado a uma certa essência que todo sujeito teria), privatizar (tudo vincula-se à vida privada) e justificar uma visão familiarista (os opositores políticos seriam emocionalmente perturbados, com dificuldades de relacionamento e advindos de famílias desestruturadas). “Ignoravam a realidade social, como se o sujeito não fosse produto de seu contexto histórico”, afirma Cecília. Em seu pós-doutoramento, na USP, o estudo Operação Rio: o mito das classes perigosas, a pesquisadora, fundadora e hoje vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais-RJ, fala da produção feita pelos meios de comunicação hegemônicos do “inimigo” a ser perseguido. Aponta historicamente como, desde o final do século XIX, se associa indissoluvelmente pobreza com criminalidade.
Mas a segurança pública, talvez a face mais visível da herança da ditadura, não é a única questão mal resolvida, na análise dos estudiosos. Não é raro disseminar em certas camadas da opinião pública discursos de descrença em relação ao atual regime político. Ora é a desconfiança nas instituições, ora a percepção de que os governantes são corruptos. Para o cientista político Fernando Limongi, da USP, essa visão é baseada em muito preconceito e falta de conhecimento sobre o papel e a atuação das instituições. O projeto temático da FAPESP Instituições políticas, padrões de interação Executivo-Legislativo e capacidade governativa, iniciado em 1997, desmente a construção de que o regime político pré-1964 funcionava mal e isso gerou um conflito que resultou no golpe.
“Esse diagnóstico, que a meu ver estava errado, influencia a Constituinte de 1987, que redesenhou as relações institucionais, fortalecendo o Poder Executivo, mas sem deixar de buscar tornar o Legislativo mais eficiente, aumentando a capacidade de o presidente ter sua agenda política implementada”, diz Limongi. Mas os estudos do projeto temático que comparam o período 1945-1964 com o atual mostram que antes do golpe o sistema funcionava de forma diferente, que o Executivo não dominava tão fortemente o processo legislativo, mas não é o mesmo que afirmar que o sistema estaria à beira de um colapso. Funcionava, apenas de forma diferente. O projeto temático, coordenado por Limongi e pela cientista política Argelina Cheibub Figueiredo, já gerou uma série de artigos e livros, além de teses de mestrado e doutorado. Limongi também faz parte de outro Cepid da Fundação, o Centro de Estudos da Metrópole, onde estuda questões eleitorais.
A Guerra Fria, que se caracterizou por disputas estratégicas e conflitos indiretos entre Estados Unidos e União Soviética, era um fator de maior importância nos cálculos políticos que os partidos brasileiros faziam naquele período, explica Argelina. Os três partidos sobre os quais gravitava a vida política (o PSD, mais ao centro do sistema político nacional, o PTB de João Goulart e os conservadores oposicionistas da UDN) possuíam muitas correntes internas, que se posicionavam radicalmente conforme o tema em disputa. As reformas de base propostas por Jango, por exemplo, foram defendidas com unhas e dentes por grupos de esquerda entre os trabalhistas. Na época, eles viram sua representação no Congresso crescer nas eleições de 1962, mas não tinham maioria. Apesar disso, não aceitavam nenhum tipo de negociação – bem diferente do cenário atual. Em seus estudos sobre o Legislativo, a cientista política lembra que o Congresso tem 70 anos de atividade parlamentar praticamente ininterrupta, com exceção de alguns meses de 1966 e 1969. “Os deputados, prefeitos fora das capitais e vereadores continuaram sendo eleitos, o que fez com que a política local nunca deixasse de ter influência, o que persiste até hoje”, explica.
A ditadura teve a preocupação de institucionalizar o governo dos militares, estabelecendo suas reformas, criando um Executivo forte, onde um dos principais mecanismos de aprovação de projetos era o decreto-lei. A Constituição de 1988 acabou por manter poderes atribuídos ao chefe do Executivo pelos governos militares para evitar que um presidente fraco se tornasse incapaz de governar diante de um Congresso conservador, explica Argelina. Mas isso não tornou o Legislativo refém da Presidência, que agora depende de intensas negociações com os líderes dos partidos para poder definir sua agenda, seja por meio de projetos de lei ou medidas provisórias. “Hoje o presidente é mais forte do ponto de vista institucional, mas tem de governar dentro de uma coalizão, já que o Congresso tem condições de se impor quando quer.”
Um outro objeto de estudo ainda pouco explorado se refere ao mundo do trabalho e dos trabalhadores nesse período. Fundamental para compreender o golpe de 1964 e suas consequências, o papel dos trabalhadores e do mundo do trabalho demanda mais pesquisas, na avaliação do sociólogo Marco Aurélio Santana, diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. “Há, depois do golpe, uma visão muito crítica da participação deles no pré-1964, como se tivessem ‘errado’ no pré-1964, sido ‘derrotados’ em 1964 e ficado ‘imobilizados’ e/ou ‘ausentes’ no pós-1964”, explica. A exceção ficaria por conta de dois momentos relevantes, as greves operárias de 1968 – em Osasco (SP) e Contagem (MG) – e a partir de 1978, com as greves do ABC paulista, lembra Santana. O sociólogo adverte que logo após tomarem o poder as Forças Armadas trataram de cassar e prender as lideranças comunistas-trabalhistas que eram hegemônicas no sindicalismo da época. E, buscando uma reorientação sindical, favoreceram a aproximação com correntes ligadas ao sindicalismo conservador, mais propenso às conciliações e negociações, além de ter um cunho assistencialista.
“A ditadura tentou despolitizar os sindicatos, mas acabou por politizar as negociações salariais ao adotar como política econômica central o combate à inflação pelo controle dos salários, a chamada ‘política de arrocho salarial’”, conta Santana, que atualmente coordena o projeto de pesquisa Trabalho, trabalhadores e regime ditatorial: a experiência brasileira (1964-1985). “Os sindicatos passaram a lutar contra o arrocho salarial, o que levou a uma tensão muito forte entre capital e trabalho, agora transplantada para dentro do Estado.” Embora rapidamente reprimida nas greves de 1968, uma nova classe operária já se delineava no país, mais politizada e escolarizada, que resultou na emergência de novas lideranças sindicais nas metrópoles. O melhor exemplo é Luiz Inácio Lula da Silva, que em pleno regime militar era capaz de reunir de 50 mil a 60 mil trabalhadores em assembleias no ABC paulista. A luta específica dos trabalhadores se politizou, buscando, inclusive, a forma partidária, porque perceberam que não bastava reivindicar salários, mas também se opor às políticas do regime que produziram crescente concentração de renda e deterioração das condições de vida. Nesta perspectiva, o Partido dos Trabalhadores não surgiu por mero acaso em 1980.
O pesquisador Armando Boito Jr., professor titular de ciência política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lembra que o Brasil do ciclo militar manteve a política desenvolvimentista, ao contrário dos vizinhos Chile e Argentina, que adotaram em suas respectivas ditaduras o modelo capitalista neoliberal. Na ditadura brasileira, o Estado preservou, de múltiplas maneiras, sua função de indutor do crescimento. “Os militares mantiveram a política de industrialização, mas liquidaram com o populismo, que era a base popular do desenvolvimentismo. Tentaram avançar com uma perna só”, compara. Na redemocratização, o primeiro presidente eleito, Fernando Collor, abriu as portas do país para o capitalismo internacional, levando à regressão da industrialização brasileira.
Quando Lula assumiu o poder, ele adotou uma política chamada de neodesenvolvimentista por Boito Jr., autor, dentre outros, do livro Política neoliberal e sindicalismo no Brasil (Editora Xamã, 2002). “O neodesenvolvimentismo é o desenvolvimentismo possível dentro do modelo capitalista neoliberal ainda em vigor. Essa política favorece, principalmente, a grande burguesia interna brasileira, mas obtém apoio, também, em amplos setores populares.” Boito Jr. entende que se formou, sob os governos petistas, uma ampla e heterogênea frente política que favoreceu a luta dos sindicatos mais do que aquelas prevalecentes na década de 1990 e sob a ditadura militar.
Nos governos Lula e Dilma, cresceu muito o número de greves (segundo o Dieese, foram 873 em 2012 ante as 312 de 2004) e os trabalhadores obtiveram aumento real de salário (18% dos acordos e convenções tiveram aumento real em 2003, essa porcentagem foi num crescendo até chegar a 96% no ano de 2012). “Por um lado, os sindicatos se tornaram atores reconhecidos no jogo político, mas, devido a sua posição subalterna na frente política neodesenvolvimentista, acabaram relegando para segundo plano algumas de suas bandeiras, como a jornada semanal de 40 horas e a regulamentação restritiva da terceirização”, analisa Boito Jr.
O economista Edmar Bacha, sócio-fundador do Instituto de Estudos de Política Econômica Casa das Garças, discorda de que Lula e Dilma tenham instaurado um governo de viés desenvolvimentista e observa que as comparações com o regime militar são muito desiguais. O governo de Geisel investia entre 5% e 7% do Produto Interno Bruto (PIB), enquanto atualmente, excluído o programa Minha Casa, Minha Vida, essa taxa fica entre 1% e 2%. E em vez de industrialização estaria havendo um retrocesso, afirma Bacha, um dos pais do Plano Real e membro do conselho consultivo internacional da Yale University. “Falta ao governo atual um entendimento sobre o que é a industrialização na época da globalização. Uma coisa é um país pobre e agrário, num período em que a economia mundial era desintegrada, adotar uma política de substituição de importação. Hoje não adianta fazer isso, porque se protege a indústria nacional elevando o custo da produção”, compara.
A respeito da economia nos anos da ditadura, e a despeito das diferentes fases que ela experimentou no período, uma das imagens mais recorrentes nos debates é a do “milagre brasileiro”. O economista José Pedro Macarini, da Unicamp, procurou desmitificar esse tema. “O milagre não perseguiu a industrialização, mas apenas o crescimento. A única forma de legitimidade do governo junto à população era crescer a altas taxas”, explica. Mas o foco na industrialização ocorreria apenas no governo Geisel com o 2º Programa Nacional de Desenvolvimento (PND).
Antes do golpe de 1964, o Brasil atravessava uma fase de desaceleração, evoluindo para uma crise econômica aberta. Se na década de Juscelino Kubistchek o PIB crescia 7,5% ao ano, em 1963 ele cresceu 1,6%. A inflação medida pelo Índice Geral de Preços, da Fundação Getulio Vargas, rondava a casa dos 30% com JK e atingia 81% um ano antes do golpe, durante o governo de Jango. “O déficit do setor público e o endividamento eram preocupantes. Sob Jânio uma renegociação bem-suce-dida da dívida externa fora conduzida pelos embaixadores Roberto Campos e Walther Moreira Salles. A crise política de l962-63 obrigou a nova tentativa de renegociação, porém fracassada”, diz Macarini. Para atravessar o período de águas turbulentas, que durou de 1964 a 1967, o primeiro presidente militar, o marechal Castello Branco, criou o Plano de Ação Econômica do Governo (Paeg). Com o objetivo de combate à inflação, o plano promoveu uma severa contenção do crédito, aliada à deterioração do poder de compra dos salários e ao corte de gasto público (incluindo o investimento).
O Paeg proposto pelos ministros Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões conseguiu realizar as reformas tributária, monetária-financeira, habitacional e do setor externo. São dessa época heranças que perduram até os dias de hoje, como a criação do Banco Central, do Conselho Monetário Nacional, das financeiras e do mercado de ações, do Sistema Financeiro da Habitação, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), além da transformação dos impostos em cascata em impostos sobre o valor adicionado (IPI e ICM). “Mas essas reformas só vieram a ser sentidas pela população a partir de 1968, quando a situação econômica mundial melhorou e havia uma grande liquidez internacional”, acrescenta ele.
De 1968 até o começo de 1974, o país vivenciou o chamado “milagre econômico”, registrando taxas de crescimento acima de 10% ao ano e inflação controlada abaixo dos 20%. O “Brasil grande” mergulhou numa fase de construção de grandes obras, como a rodovia Transamazônica, a ponte Rio-Niterói, a hidrelétrica Itaipu e a Ferrovia do Aço. “Mas foi a partir de Delfim Netto que houve a ampliação dos grandes empréstimos de instituições financeiras do exterior, que vai crescendo até desaguar na crise da dívida externa nos últimos anos dos governos militares”, observa Macarini.
Antonio Delfim Netto, economista formado pela USP, participou dos governos dos generais Costa e Silva (1967-1969), Médici (1969-1973) e João Figueiredo (1979-1985). A dívida externa brasileira era de US$ 3,5 bilhões entre 1963 e 1968, chegou a US$ 12,5 bilhões em 1974 e, por conta de novos empréstimos, dos juros e amortizações, alcançou US$ 100 bilhões em 1980. É importante lembrar que em 1975 houve uma contração da economia mundial. O 2º PND, no governo Geisel, seria também uma resposta ao primeiro choque do petróleo e tinha como finalidade estimular a produção de insumos básicos, bens de capital, alimentos e energia. “A indústria de bens de produção se diversificou pouco, não livrou o país da grande dependência de importações de máquinas e equipamentos e não houve transformação estrutural da economia durante o milagre”, critica Macarini. Embora realizado aquém de suas ambiciosas metas originais e num cronograma muito dilatado e acidentado, o 2º PND provocou transformações estruturais da economia que não deixaram de constituir uma herança positiva para o período iniciado em 1985.
Nessa conta do endividamento externo entra o polêmico acordo de cooperação que o Brasil assinou com a Alemanha para a construção de Angra 1. O país europeu foi o único que se dispôs a transferir a tecnologia da ultracentrifugação do urânio, diz o pesquisador Luiz Alberto Moniz Bandeira, autor de O “milagre alemão” e o desenvolvimento no Brasil (Editora Unesp, 2011) e O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil – 1961-1964 (Editora Unesp, 2010). “A transferência foi feita clandestinamente, pelos técnicos e cientistas que vieram pela Alemanha, de acordo com o protocolo industrial, e não estavam sujeitos a salvaguardas.” O país europeu aceitou transferir a tecnologia porque necessitava de urânio enriquecido para produção de energia elétrica, e não queria ficar na dependência dos Estados Unidos. Professor titular aposentado da Universidade de Brasília, Moniz Bandeira reitera que os militares viam como fundamental o domínio da energia nuclear pelos brasileiros, inclusive para se afirmar em uma posição de potência mundial.
O físico José Goldemberg, ex-reitor da USP, lembra que os principais representantes da comunidade científica, sobretudo a Sociedade Brasileira de Física e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, se opuseram publicamente ao projeto dos militares, uma vez que o acordo nuclear com a Alemanha previa a compra de um pacote fechado e a própria ciência brasileira não teria acesso à tecnologia nuclear. O acordo era benéfico para os cofres alemães. Em 1967, o governo anuncia a compra da usina de Angra 1. Mas, em 1975, os cientistas foram surpreendidos com a intenção de Geisel de ampliar o acordo com a Alemanha, com a compra de oito grandes reatores nucleares. “Hoje se sabe que essa oposição foi fundamental para evitar a nuclearização do Brasil”, lembra Goldemberg. Dos oito reatores, só Angra 2 foi concluída, enquanto Angra 3 está prevista para 2018.
Sindicatos perseguidos, partidos cassados, recrudescimento da violência, criminalização da juventude, crescimento aliado ao aumento da desigualdade social, tudo isso fez parte da realidade do regime militar. Como e por que boa parte da sociedade aceitou fazer parte desse jogo é uma questão em aberto. Novas gerações de pesquisadores, como a historiadora Janaina Cordeiro, da Universidade Federal Fluminense, têm procurado desemaranhar esse novelo. Ela defendeu, em 2012, uma tese sobre as comemorações do Sesquicentenário da Independência no ano de 1972. O trabalho será publicado neste ano sob o título A ditadura em tempos de milagre: orgulho, comemorações e consenso pela editora da FGV e com apoio da Faperj. Nele, a autora afirma que os governos militares recorreram a estratégias para alcançar determinados graus de consenso social. Eles não inventaram a ideia de construção do novo, mas essa imagem foi minuciosamente retomada e reelaborada por eles. Citando a formulação do historiador Robert Gellatelly, que estudou a conformação do pacto social sob a Alemanha nazista, Janaina afirma que mecanismos de coerção e consentimento ajudaram a obter o apoio dos brasileiros. “A ditadura soube estabelecer diálogos com importantes tradições nacionais, ativar sentimentos patrióticos e ufanistas que são componentes importantes de determinado imaginário coletivo nacional”, conclui.
(Revista Pesquisa Fapesp/Eduardo Nunomura) – http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/04/24/marcas-profundas/