Confira o discurso na íntegra:
Boa noite a todas e todos. A SBPC acaba de celebrar um aniversário redondo, os seus 75 anos. E hoje abre a sua 75ª RA, nesta UFPR, cuja Faculdade de Direito foi um núcleo de resistência contra as ilegalidades dos últimos anos. Por isso, é um resgate que temos, e, ao mesmo tempo, uma alegria. Destaco as ilegalidades que levaram à destituição de uma presidenta eleita pelo povo e, depois, às manipulações judiciais que impediram, em 2018, a candidatura à Presidência da República do favorito nas pesquisas de opinião, abrindo a via para anos de negação da ciência e da verdade.
O reitor evocou uma frase que eu pronunciei em frente ao presidente Lula, no dia 12, no Palácio do Planalto, no resgaste do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, que eu disse que acabou a República de Curitiba, e a República volta aos valores republicanos. Não existe República de um lugar só; a República é de todos. A República do Galeão foi péssima e levou ao suicídio do presidente Vargas. A República de Curitiba foi também uma atitude golpista. E o presidente Lula foi convidado inúmeras vezes para vir à abertura desta Reunião, mas infelizmente, por conta de sua agenda, não pode vir. E perdemos a chance de dizer pessoalmente a ele, e peço à ministra Luciana e a todos aqui que digam um grande “Boa noite, presidente Lula”.
Sim, esta é nossa primeira RA depois do pesadelo que matou 500 mil brasileiros acima da média mundial. Lembro que num mundo de 8 bilhões de habitantes, a covid ceifou quase 7 milhões de vidas, menos de 1 por mil – enquanto no Brasil, com 203 milhões, passaram de 700 mil os mortos pela pandemia. A negação da ciência, a hostilidade aos cuidados com a saúde, causou aqui meio milhão de lutos além da média internacional.
Foi preciso unir as forças democráticas do Brasil para deter a destruição, que também devastou nosso meio ambiente, e isso bem no período em que as mudanças climáticas se tornam mais evidentes. É claro que o planeta pode superar os desafios que hoje vive o clima, mas poderá a humanidade sobreviver? Se a temperatura subir 4 graus centigrados neste século em relação ao período pré-industrial, a vida não se debilitará? A humanidade conseguirá resisitir?
A saúde humana e a saúde do meio ambiente, a saúde do planeta está em risco. A SBPC, todos sabem, não é uma organização partidária. Seu Estatuto e tradição determinam que não se subordine a nenhum partido. Mas isso não nos impede de tomar posições políticas, sempre que Política se escreva com P maiúsculo. A grande política no mundo de hoje parte de um valor básico, o compromisso com a verdade. Não é fortuito que cientistas e jornalistas sejam o alvo preferencial do ódio da extrema direita negacionista, aqui e mundo afora. A ciência lida com a verdade dos fenômenos, a imprensa livre com a verdade dos fatos. A verdade é insuportável para quem vive da mentira e do ódio.
Com estas palavras, saúdo a Ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, que como é tradição na abertura de nossas Reuniões Anuais, hoje nos brinda com sua presença. A SBPC lida com o círculo virtuoso de ciência (mais tecnologia e inovação), educação, saúde, meio ambiente, cultura, direitos humanos e inclusão social. Nosso principal interlocutor no Governo é o MCTI. Boas-vindas, Ministra, e nossa comunidade reitera o que a SBPC disse no dia 19, em um manifesto com a Academia Brasileira de Ciências (ABC), aqui representada pela Helena Nader: queremos um MCTI à altura de nosso País, que atenda a nossos propósitos fundamentais e não seja moeda de troca para conveniência de quem não ama a verdade nem a ética.
A opção que vimos pelo ódio não é mero preconceito. Ela encobre interesses econômicos sórdidos e inconfessos. A devastação do meio ambiente brasileiro, em especial da Amazônia, proporcionou lucros imediatos a quem também se beneficiou do massacre dos povos da floresta. Faz pouco mais de um ano, o brasileiro Bruno Pereira e o britânico Dom Phillips eram assassinados em nossa floresta tropical. Faz apenas seis meses, o Brasil ficou chocado com o morticínio entre os indígenas Yanomami, incluindo muitas crianças, em decorrência da fome, do não atendimento a doenças e, ainda, da invasão de suas terras em busca do lucro fácil e não sustentável. A eles, e às centenas de milhares de mortos da covid, a SBPC presta agora seu preito.
Tudo faremos para que essas perdas não tenham sido em vão. É nosso dever imperioso clamar por um sonoro nunca mais. Pensávamos que o Nunca Mais da década de 1980 tinha sido definitivo, quando repudiamos censura, tortura, ditadura, mas precisamos reiterá-lo com ainda mais vigor. É preciso cortar a erva daninha do ódio e da letalidade pela raiz. A ciência é nossa principal arma para tanto.
A ciência, em apenas um século, dobrou a expectativa de vida. Nossos avós, bisavós, trisavós nasciam em 1900 com uma expectativa média de viverem quarenta anos. A queda na mortalidade infantil, o saneamento básico, a saúde pública, as ciências da saúde permitiram que hoje se espreite uma duração média de 80 anos para quem está nascendo. Nossa homenagem, aqui, aos companheiros que militam nos hospitais, clínicas, faculdades, laboratórios e ainda no Ministério da Saúde, cuja titular, Nisia Trindade, estará aqui na terça-feira para sua conferência. Boas-vindas, Ministra!
A ciência se transmite pela educação. O Brasil avançou muito nesta área, entre os anos 1990 e meados da década passada. Finalmente, colocou quase todas as crianças e adolescentes na escola, na faixa dos 6 aos 14 anos, no curso Fundamental. Resta completar a inclusão na educação infantil e no ensino médio. Por sinal, rever a reforma do ensino médio é uma prioridade. Ela foi imposta, por medida provisória, com a promessa, falsa, de que cada aluno escolheria livremente entre cinco itinerários, isso num momento em que o teto de gastos cortava recursos dos programas sociais. É preciso rever isso. O ensino médio não era bom, mas reduzir aulas de português e matemática, não dar formação em todas as ciências, inclusive sociologia e filosofia, está errado.
Porém, mais que tudo, é preciso garantir a alfabetização na idade certa. Quando Ministro da Educação, em 2015, divulguei a primeira Avaliação Nacional de Alfabetização. Os dados eram e continuam sendo inquietantes. São muitas as crianças que, no final do 3º no do Fundamental, ainda não entendem o que leem, o que escrevem ou não conseguem fazer as quatro operações. O Brasil não pode amputar desta maneira o futuro de seu povo. Precisamos pôr fim à constante produção de pobreza, miséria e fome, que é uma herança maldita da colonização, da escravidão e da exploração do ser humano pelo ser humano.
É óbvio que, lidando com a ciência, somos mais próximos da educação superior e em especial da pós-graduação, mas como cidadãos, sabemos que é na educação básica que se forma a cidadania, ou se deforma a desigualdade.
Aproveito para anunciar que o Ministro da Educação finalmente respondeu a nossos convites e informou que virá à Reunião Anual. Poderá, assim, escutar a comunidade, que espera muito do atual governo, ao qual incumbe o resgate dos valores éticos que podem curar a alma de nosso país, tão ferida estes últimos anos em que se promoveu o ódio, o armamento, a morte. Bem-vindo, Ministro Camilo Santana.
Porque, assim como a cultura da morte, a miséria e a fome não são um resíduo que vai sumir sozinho por alguma mão invisível. Elas existem porque são permanentemente reproduzidas. Políticas públicas perversas garantem esse massacre dos corpos e das almas, essa recusa de que possam florescer os talentos dos mais pobres. A questão social, dizia cem anos atrás um presidente do período pré-democrático do Brasil, era um “caso de polícia”. Entendemos, ao contrário, que a questão social é o caso principal da política.
País rico, dizia nossa até hoje única presidenta da República, é país sem pobreza. A ciência, pela sua principal associação, nossa SBPC, tem-se colocado sempre à disposição de nosso povo e dos seus governos para colaborar na vitória sobre o atraso – científico e educacional-, para cooperar na construção de um país rico, isto é, sem fome nem pobreza.
Por isso, proponho como lema, mexendo na ordem das palavras que compõem o nome de nossa sociedade, Ciência para o Progresso da Sociedade Brasileira. Entendemos progresso, claro, não como a destruição do meio ambiente, não como o desdém pelos saberes e sabedorias tradicionais, mas como um avanço que beneficie a todos, sem exceção; como a celebração de um novo pacto entre natureza e cultura, entre o ser humano e o mundo natural, que nos permita sair do subdesenvolvimento crônico, da desigualdade gritante, do sofrimento físico e psíquico.
Falei, na verdade, como valor primeiro da ciência e disse que precisamos curar a alma ferida de nosso povo. Disse que a grande Política, com P maiúsculo, tem que se fundar na verdade e para isso precisa da ciência. Mas ela também precisa ter metas, e essas metas consistem em valores que são éticos. A política hoje tem de ser ética.
Os cientistas, cada vez mais, têm objetivos éticos. Sabemos que a ciência avançou muitas vezes de mãos dadas com a guerra. A energia nuclear foi desenvolvida para derrotar o fascismo, que é a cultura mais enfática que existe na promoção do ódio e do assassinato. O fascismo é o crime comum tornado política. Felizmente, nos últimos 78 anos não se voltou a utilizar a bomba atômica. Mas, hoje, nossa prioridade não é mais a guerra, e sim a vida, a saúde. Falei na expectativa de vida, mas devo acrescentar sua qualidade. Não há vida de qualidade sem cultura, sem atividade física. O cinema, estes dias, nos oferece o filme sobre Oppenheimer, um dos pais da bomba atômica e um dos primeiros cientistas a colocar de forma séria, corajosa e contundente as questões éticas suscitadas pela morte em massa de civis inocentes. Para ele e todos os colegas que lutam por um mundo ético, seguem nossa admiração e respeito.
Infelizmente, nossa cultura política é pobre. Nossos demagogos apostam na denúncia da corrupção, verdadeira ou imaginária, para conseguirem seus fins escusos. Aliás, quem mais chama de corruptos os adversários são os próprios corruptos, como prova a nossa história. Mas a mera denúncia da corrupção é uma visão pobre do que é a ética, a finalidade ética de viver em sociedade. Não roubar, não se corromper é um imperativo moral, mas não é mais do que uma obrigação. Num país marcado pela injustiça social, o grande dever ético é mais amplo. Ele consiste em vencer a fome, a miséria e, como diz a Constituição, a pobreza. Nossos esforços vão nesta direção. Eleições livres e limpas não são fáceis. Vimos como foi preciso, ano passado, garantir que todos pudessem votar, a despeito dos bloqueios ordenados pelo governo da época, nas estradas do Nordeste, e assegurar que o derrame de dinheiro nos meses que precederam a eleição não fraudasse a vontade popular. Nossa homenagem aqui ao Ministro Alexandre de Moraes, ofendido há poucos dias por criminosos no estrangeiro. Devemos à firmeza dele a lisura do pleito. Deixemos claro, o crime contra a democracia é um dos piores que existe. Não pode haver leniência com ele. Pois é em eleições livres e limpas que o povo soberano deve escolher o melhor meio de realizar os fins éticos que mencionei, mas os fins mesmos devem ser comuns a todos. Somente quando superarmos a fome e a pobreza, o Brasil poderá realizar suas grandes potencialidades.
Finalmente, não se faz ciência sem muitas parcerias. Nossas reuniões anuais se realizam sempre em universidades, e este ano a UFPR tem sido uma grande anfitriã, com a cooperação das demais universidades do Paraná e do Instituto Fedeal. A Fundação Araucária cooperou conosco. E além delas, estamos na ICTP.BR, com destaque para a ANDIFES, CONIF, CONFAP, CONFIES. E não podemos esquecer a ANPG, sempre atuante, bem como a UNE e a UBES.
Com estas reflexões, declaro aberta a 75ª RA da SBPC. Peço mais uma vez, como ano passado em Brasília, quando não sabíamos ainda se conseguiríamos recuperar nosso futuro, que gritem comigo: Viva a ciência, viva a SBPC, viva o Brasil, viva a democracia!
Curitiba, 23 de julho de 2023
Renato Janine Ribeiro – presidente da SBPC