“Não existe melhor momento para se debater a relação entre Ciência e Democracia do que no Brasil de hoje”. É o que pondera o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o filósofo Renato Janine Ribeiro. Em conferência durante a 75ª Reunião Anual da SBPC, realizada de 23 a 29 de julho na Universidade Federal do Paraná (UFPR), o professor afirmou que o momento eleitoral em que o País viveu no último ano e as repressões governamentais da gestão passada ainda estão presentes e exigem a reflexão da sociedade.
“No ano passado, quando a gente foi discutir o tema para a Reunião Anual de Curitiba, houve várias sugestões, mas pensamos que tínhamos que pegar o touro à unha, como diz o ditado popular. Não tínhamos que discutir, por exemplo, comunicação ou algum aspecto específico da academia, mas sim Ciência e Democracia”, afirmou, no começo de sua conferência.
Janine Ribeiro afirmou que, dado o panorama brasileiro e o histórico recente das movimentações nas cadeiras dos poderes Executivo e Legislativo, a sociedade brasileira precisa debater o que é democracia – um papel essencial para a comunidade científica, já que ela é parte da sociedade e sofre influência direta do governo que a comanda.
“O Brasil passou quatro anos com uma forte ameaça à Democracia. Durante esses anos, tivemos um governo militando contra os pilares democráticos do País. Esse governo foi derrotado na última eleição presidencial, mas se ele tivesse sido reeleito – e por pouco não o foi – nós temos certeza de que a situação estaria muito precária hoje.”
O professor alertou para o crescimento da frente autoritária na política global, o que traz retrocessos aos países que governam. “Quando os governos antidemocráticos cumprem um segundo mandato, como na Hungria, Polônia e Índia, a destruição da Democracia se torna muito forte. Eu não vou dizer que é algo irreversível, porque tenho certo otimismo dentro de mim, mas se torna cada vez mais difícil de se reverter as ações políticas. Eles aparelham as Cortes Supremas, intervêm no Judiciário, devastam a Educação, atacam a liberdade de costumes. Enfim, eles fazem um estrago geral.”
Foi no momento das eleições no Brasil de 2022 que o papel da Ciência foi colocado em jogo e a comunidade científica precisou se articular para considerar dois panoramas distintos. “Nós não sabíamos se, no ano seguinte, Ciência e Democracia seriam armas de resistência, como resistimos durante quatro anos, ou se ajudariam na reconstrução do País. Felizmente, pelo trabalho de muitos e pelo o que foi definido em urnas, estamos do lado da reconstrução.”
O presidente da SBPC deixou claro que a entidade não tem partido e nem compromisso político com o governo atual. “Nós criticamos quando discordamos de alguma medida. Por exemplo, criticamos os recursos públicos que foram destinados à Taurus, uma fábrica de armamento do Rio Grande do Sul que está ou estava construindo uma escultura de uma metralhadora em seu estacionamento. A Finep aprovou quase R$ 200 milhões para lá e nós protestamos. Nós também achamos o reajuste das bolsas necessário, mas queremos mais, porque não foi o suficiente para cobrir 10 anos de atrasos”, detalhou Janine Ribeiro.
Para o professor, que foi ministro da Educação em 2015, no governo Dilma Rousseff, o que o Brasil viveu em seu passado recente vai além de questões partidárias, já que se tratava de uma real ameaça à democracia, “Nós fazemos críticas, mas, evidentemente, sabemos diferenciar dois governos distintos. Para nós, o mais importante nem é o governo, é a sociedade. Creio que a lição desses últimos anos é, sobretudo, que as instituições podem ajudar a limitar um mau governo, mas se as instituições não tiverem por trás delas um afeto democrático, como eu chamo, valores democráticos, incrustados na alma das pessoas, elas estarão enfraquecidas.”
Indo para o campo da filosofia, o professor explicou que, para impedir o autoritarismo ou o totalitarismo, construiu-se a tese da limitação dos poderes um pelo outro – o Executivo, Legislativo e Judiciário.
“As instituições garantiram que a última eleição no País fosse limpa? Sim. Mas por quê? Trazendo um pouco para a filosofia: por que existe a ideia de instituições? Instituições existem para evitar, limitar o mau governo. Você pode ter um mau governo porque o governante é louco, ou porque ele é maldoso, duas grandes hipóteses, aí você precisa ter uma forma de limitá-lo. Na Idade Média, não havia instituições para isso, então o sistema era vago e chegava até no limite do tiranicídio, que alguns filósofos levantam, e que seria você matar o rei que se tornasse tirano. Na modernidade, vai se construir uma ideia de ter estruturas estáveis que tiram o mau gestor, como o impeachment, demais processos, eleições regulares, proibição de reeleição, entre outros.”
O problema, para Janine Ribeiro, é que os poderes são geridos por pessoas, que têm seus valores e podem ser, sim, corrompidas. Por isso, é necessário que cada instituição acompanhe as decisões das demais instituições que compõem o poder político, de modo que tudo ocorra sem abusos.
“Há uma frase famosa, que geralmente é citada errada: “Todo o poder tende a corromper. O poder absoluto corrompe absolutamente”. Geralmente, as pessoas falam: “todo poder corrompe”, não, todo poder tem tendência a corromper. Por que o poder absoluto corrompe absolutamente? Porque aí não há nada que limite o poder. Por exemplo, o Poder Executivo, que tem a tendência de corromper, é limitado pelo Poder Legislativo que, idem, mas é limitado pelo Judiciário, que também tem a tendência de corromper. Nenhum deles tem decência intrínseca, não tem, são compostos de seres humanos, e corrupção não é só roubar, corrupção é abuso de poder. Por exemplo, quando um juiz e um promotor fazem um conluio, eles estão fazendo corrupção. E, para isso, é necessário o equilíbrio dos poderes”, concluiu.
“Mas as instituições brasileiras não são fortes o bastante. Para dizer com todas as letras, quem segurou a democracia no Brasil foi uma pessoa, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE. Ele merece nossa admiração, sim, mas ao mesmo tempo este fato nos preocupa. Indica que a democracia não está forte a ponto de dispensar heroísmos. Porque, fosse outro o presidente do TSE, talvez não estivéssemos aqui. E para termos instituições fortes, precisamos de uma convicção democrática forte na sociedade. Sem uma sociedade democratizada, a democracia só no governo não existirá”, concluiu.
Carta de Curitiba proclama compromisso com a Democracia
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência criou a tradição de, em suas Reuniões Anuais, elaborar um documento com o compilado dos debates realizados, apontando as diretrizes e urgências para o Brasil. Representando a 75ª Reunião Anual, realizada na Universidade Federal do Paraná, a “Carta de Curitiba” reflete o atual momento do País: um Brasil tentando retomar a sua base democrática, enquanto ainda lida com as consequências do autoritarismo regido nos últimos quatro anos.
Para isso, a Carta reflete muito das palavras ditas por Janine Ribeiro em sua conferência e colocou como prioridade zero do País o restabelecimento e o fortalecimento da democracia:
“[A Democracia] não existe sem liberdade de expressão, de organização e de voto, nenhuma das quais, porém, pode ser utilizada para a ofensa, a opressão ou a discriminação. O equilíbrio dos três poderes constitucionais deve ser restabelecido, o que inclui o fim do orçamento secreto e a concepção do orçamento por critérios de interesse nacional”, reforça o documento. Confira a versão completa.
O professor e presidente da SBPC concluiu que o papel da sociedade hoje é fortalecer o papel da comunidade e, consequentemente, reforçar o seu papel democrático. “Essa sensação de comunidade precisa ser constantemente reconstruída. Isso somente se faz com a educação, a cultura, as representações, mas que obviamente mantêm uma relação forte com o plano dos fatos, com as realidades econômicas, com as perspectivas de futuro para todos e cada um.”
Veja aqui a conferência na íntegra.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência