Por que a democracia?

Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, explica por que esse é o ponto principal da “Carta de Curitiba”, documento lançado pela entidade durante sua 75ª Reunião Anual, na última quinta-feira, 27 de julho

Ao contrário do ditado segundo o qual “beleza não se põe à mesa”, querendo dizer que ela apenas enfeita a vida, não trazendo resultados concretos, a democracia sim se põe à mesa. Ela traz efeitos positivos para a vida das pessoas. Por isso mesmo, é o primeiro ponto, o principal, em nossa Carta de Curitiba, com a qual a SBPC manifesta suas convicções e programa de ação para o ano que ora começa, o 76º ano de sua vida de lutas, marcadas por dificuldades, mas também muitas vitórias.

Por que a democracia? Não é apenas uma questão de valor, embora isso importe: a ética de nosso tempo requer o respeito à igualdade de direitos, à liberdade de escolhas e, ainda, para completar a mensagem da Revolução Francesa, um espirito de solidariedade e fraternidade – como na Ode à alegria, de Beethoven. Mas, além dessa dimensão ética, necessária para que a vida em sociedade traga felicidade às pessoas, a democracia proporciona resultados concretos.

Basta ver que, ao terminar a ditadura no Brasil, em 1985, nossos indicadores sociais eram medíocres. O regime de exceção alegava investir na economia, mas a pobreza devastava o País. Já a liberdade de expressão e organização, sendo ambas intrínsecas à democracia, permitiu que a maioria do eleitorado, que consistia e consiste-nos mais pobres, fizesse valer sua voz. A renda mínima e a média cresceram, a saúde melhorou, a educação subiu de qualidade. Tudo isso é work in progress, obras em andamento. Nada chegou ainda aos ideais que defendemos. Porém, avançamos muito mais do que nos períodos em que, a pretexto de uma dominação tecnocrática, calavam-se as vozes do povo.

Não é fortuito, assim, que um recente governo, hostil à Constituição de 1988 e aos próprios valores democráticos, tenha devolvido o Brasil ao mapa da fome, do qual saímos no início da década passada. Não há democracia sem condições e conclusões sociais. Democracia não é uma mera forma de governo, ao contrário do que pensavam os antigos.

Lendo Aristóteles, vemos democracia, aristocracia (o governo dos melhores, dos aristoi) e monarquia como formas de governo. Essa leitura é retomada até mesmo, dois mil anos depois, por Thomas Hobbes. Contudo, se olharmos a visão que os críticos gregos da democracia têm deste regime, veremos que o acusam de dar destaque aos polloi, aos muitos, à maioria, aos mais pobres – e receiam que a maioria confisque os bens dos ricos e assim substitua a lei pelo arbítrio da multidão. O que é isso, se não o medo de que os pobres queiram ter nível de vida igual ao dos ricos? O que é isso, se não um grande-medo de que se rompam as desigualdades, as hierarquias sociais? O que é isso, se não a confissão de que por trás das formas aparentemente apenas políticas estejam conflitos sociais, lutas de classes, que por sua vez acabam sendo simplesmente expressão de uma sede de justiça por parte dos humilhados e ofendidos? [1]

É esta a situação que ora vivemos. O mundo desenvolvido é aquele em que a opressão política e a exploração econômica foram contidas pela revolta dos mais pobres e pela emergência de uma ideia de Direito que não seja mera expressão da força dos mais ricos. De alguma forma, ele manifesta um quase-final feliz, em que o Bem (se não a beleza…) triunfa. Fazer o bem termina sendo vantajoso. Os valores de 1789, liberdade, igualdade e fraternidade, geram uma sociedade mais próspera.

Pode parecer um conto de fadas, mas não é. Isso está em dados estatísticos, em realidades políticas. Mas é, obviamente, algo frágil. Os avanços democráticos, inclusive em termos sociais, obtidos nas últimas décadas têm sido vulnerados pela forte reação da extrema-direita, em muitos casos com o apoio da direita. Assim aconteceu no Brasil, quando a derrota em quatro eleições presidenciais sucessivas, entre 2002 e 2014, levou o perdedor no último pleito a se subordinar à extrema-direita, em 2016 no processo de impeachment e em 2018 numa eleição à qual foi impedido de concorrer o favorito nas sondagens. Assim sucedeu e talvez volte a suceder nos Estados Unidos, em que o Partido Republicano praticamente se tornou um puxadinho da demagogia trumpista. Assim parece suceder na França, onde a extrema-direita acaba impondo segmentos cada vez maiores de sua ideologia de ódio aos partidos de direita, tradicionais (Les Républicains) ou novos (Renaissance). Assim quase sucedeu recentemente na Espanha, em que a direita do PP se achegou aos franquistas, nas recentes eleições, sem com isso conseguir formar um novo governo, ao menos por enquanto.

Ao que tudo indica,  o modelo bem sucedido nas últimas décadas, em que o confronto entre direita e esquerda democráticas se baseava na clara exclusão, por ambas, de qualquer aliança com forças antidemocráticas entrou em crise séria.

Tal crise é resultado, pelo menos em nosso País, de serem ainda fracas as bases sociais para a democracia, ou seja, um piso de igualdade que garanta a efetivação dos direitos mínimos. Pois não basta termos direitos, precisamos que eles se realizem no plano dos fatos.

Por isso mesmo, a causa democrática é prioritária em nossos dias. Ela significa que a necessária alternância no poder entre direita e esquerda, entre uma política economicamente liberal e outra de meios sociais, deve respeitar valores comuns a todos, entre eles os que estão no começo de nossa Constituição: uma cultura de paz; a erradicação não só da miséria, como da pobreza; uma sociedade justa e solidária. Meios para tal podem ser distintos, mas nossa vida em comum depende de valores assim éticos.

Talvez democracias sejam regimes com uma certa fragilidade. Sustentam-se na possibilidade de administrar conflitos. Não fantasiam sociedades sem conflitos, que só existem a custo de alta repressão. Mas reconhecem a legitimidade da divergência, e buscam fazer com que esta seja resolvida, em parte por técnicas, que são os sistemas eleitorais, em parte por uma percepção de estarmos todos num barco comum, numa casa única, em que os principais valores – amizade, respeito – nos unem, a despeito das diferenças quanto aos meios.

Essa sensação de comunidade precisa ser constantemente reconstruída. Isso somente se faz com a educação, a cultura, as representações, mas que obviamente mantêm uma relação forte com o plano dos fatos, com as realidades econômicas, com as perspectivas de futuro para todos e cada um.

Esta, a grande tarefa hoje da sociedade brasileira – na qual a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência se engaja decididamente.

Confira aqui a Carta de Curitiba.

Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC

Nota:

[1] Ver meu artigo “Democracy versus Republic: Inclusion and Desire in Social Struggles”, in Diogenes, 2008 (55: pp. 45-53), doi 10.1177/0392192108096829, retomado em Renato Janine Ribeiro, A boa política, 2017.

 

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