Apesar das discussões sobre a Amazônia estarem cada vez mais presentes no campo político, com destaque às preocupações sobre as mudanças climáticas, os debates acerca do tema partem mais de atores externos do que das populações que vivem no interior do território amazônico. E são justamente suas falas, conhecimentos e ações que não deveriam ser invisibilizadas. Para trazer essa população e suas produções científicas à tona, um coletivo de cientistas elaborou um mapeamento de todas as instituições de pesquisa da região.
“A Amazônia não é bem aquilo que se tem divulgado, a presença de associações organizadas e centros de pesquisa de ensino público no seu interior é muito maior do que se imagina”, introduziu o físico e presidente de honra da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). Ennio Candotti.
A fala ocorreu na mesa-redonda “Mapa das 32 IEs e Institutos com seus 300 campi na Amazônia”, realizada na quarta-feira, 26 de julho, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), como parte da programação da 75ª Reunião Anual da SBPC.
Também presidente do Museu da Amazônia (MUSA), Candotti afirmou que o mapeamento da estrutura científica da Amazônia Legal e os conhecimentos ali produzidos não são completos em órgãos governamentais, como o Ministério da Educação (MEC) e o da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o que compromete, diretamente, na elaboração de políticas públicas adequadas para a região. “A Amazônia é a periferia do Brasil. E segue sendo”, ponderou.
Pesquisador sênior da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Alfredo Wagner iniciou sua fala apresentando o mapa elaborado pelo Grupo de Trabalho (veja mais detalhes aqui). “Existe um pensamento geral de que na Amazônia não se tem recursos humanos, não se tem um estoque de pensadores, de intelectuais, porque nós temos uma divisão de trabalho intelectual no Brasil e, nela, a Amazônia é como se fosse a periferia.”
Ao todo, nos 166 municípios que compõem a região da Amazônia Legal, há 34 institutos públicos de pesquisa e desenvolvimento, com 330 campi. “O que esse trabalho de pesquisa nos mostra? Em primeiro lugar, nós estamos falando de 166 municípios que têm instituições de ensino superior na Amazônia, isso não é qualquer coisa. Quer dizer, isso está muito interiorizado.”
O especialista também explicou a classificação das instituições públicas sinalizadas no mapa. “Nós separamos as universidades federais, as universidade estaduais, os institutos federais e também verificamos cinco instituições não designadas como universidades, mas onde são realizadas pesquisas e experimentos diversos: o INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), o Instituto Mamirauá, a Fiocruz Amazonas, o Museu Paraense Emílio Goeldi e a Embrapa, com seus campos experimentais e seus núcleos centralizados.”
Alfredo Wagner também criticou a visão geral de que quem entende da Amazônia são as universidades localizadas da região Centro-Sul, divisão que integra os estados das regiões Sul e Sudeste do Brasil, reforçando a invisibilidade de quem está lá no território amazônico produzindo pesquisas. “Será que um dia vão transferir o Fundo Amazônia para a Amazônia? O maior fundo de recursos federais para a região funciona, hoje, no Rio de Janeiro”, denunciou.
O especialista também compartilhou a dificuldade de compilar as informações das instituições: “Por exemplo, na Universidade Federal do Pará existem 103 programas de mestrado e 47 programas de doutorado, mas as dificuldades para compor essas informações foram imensas, há um déficit de informação assustador e não tem atualização também nos centros das informações. Muitas vezes, os sites das instituições não nos ajudam. Nós acessamos os sites das instituições. Aí, depois, passamos para o site do Sistema Integrado de Gestão de Atividades Acadêmicas, o SIGAA. Depois, passamos para a plataforma Sucupira. Nós fomos pulando de um site para outro, porque as informações não se completam.”
58% do território, 15% dos recursos
Seguindo com as falas da mesa, a pesquisadora Tatiana Deane de Abreu Sá, da Embrapa Amazonas, trouxe um panorama da instituição e a sua articulação no território amazônico.
“A Embrapa é oriunda de institutos de pesquisa espalhados no Brasil todo. Ao longo de seus 50 anos, ela herdou duas unidades de pesquisa na Amazônia, uma criada em 1939, que é onde eu trabalho, e outra que foi fundada posteriormente, em Manaus. A partir disso, ela foi criando uma rede, que conta hoje com 43 centros de pesquisa.”
Um dos dados apresentados por Sá que mais repercutiu ao público presente foi a porcentagem de recursos que a setorial amazônica da Embrapa recebe, no comparativo com toda a estrutura nacional da instituição: 15% do total de recursos. “A Amazônia é 58% do território brasileiro e 15% de investimentos”, exclamaram algumas pessoas na plateia.
Recém-empossada como nova diretora da SBPC, a professora titular da Universidade Federal do Amazonas, Marilene Corrêa da Silva Freitas, ressaltou o cenário de exclusão acadêmica que vive a região.
“Durante quatro anos, eu fui reitora da UEA (Universidade do Estado do Amazonas) e, antes disso, eu implantei a política de ciência e tecnologia no meu estado, que não existia.” Freitas falou sobre o período em que esteve à frente da Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia do Amazonas, entre os anos de 2003 e 2007.
“Quando assumi a secretaria, o INPA já existia há mais de 50 anos, o Museu Emílio Goeldi tinha cento e poucos anos, a universidade federal tinha mais de 100 anos, o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas também existia há 100 anos, ou seja, várias instituições centenárias. No entanto, em relação à política de ciência e tecnologia, o único projeto nacional que existia para a Região Norte no começo dos anos 2000 era um programa de iniciação científica”, contou.
Segundo a pesquisadora, o projeto de desenvolvimento regional só direcionava recursos para a Embrapa e o INPA. “A nossa universidade federal não tinha condições de ser um polo do projeto de desenvolvimento regional. O Acre, o Amapá, Rondônia e Roraima, nem pensar. Então, qual foi a audácia da nossa política? A cada R$ 1 que o Ministério investisse no Estado do Amazonas, nós duplicamos o investimento.”
A especialista listou três tópicos que devem pautar as lutas da comunidade científica amazônica: evitar o extrativismo científico da região, evitar o apagamento da memória cognitiva da inteligência local e combater a exclusão dos cientistas formados pelos seus institutos de pesquisa.
Freitas também criticou o fato de que a Amazônia tem se tornado um local de experimentações, principalmente experimentações sugeridas por pessoas que não são de sua comunidade, e citou uma ideia de instalação de carros motorizados inspirada em um modelo do passado, os tuk-tuk:
“Uma vez encontrei numa reunião em Brasília uma moça muito simpática, mas que queria tirar todos os carros da Amazônia e trocar por tuk-tuk. Eu disse: ‘leve para a sua casa os tuk-tuk, lá na Amazônia não é lugar desses experimentos’. Ela rebateu: ‘É um combate à poluição!’, e eu reforcei: ‘Combata a poluição no interior de São Paulo’. Por que tudo o que é de ruim tem que ser feito na Amazônia? Problema no Nordeste? Problema com a estrutura agrária? Desça, vai lá para a Amazônia, leve para a Amazônia. Eu acho que a Amazônia contemporânea é, assim sendo, um anti-Brasil.”
A especialista concluiu sua fala alegando que o reconhecimento científico da Amazônia é uma luta de todas, inclusive uma luta interna da própria comunidade científica.
“As agendas públicas são direitos da Ciência e Tecnologia e do povo brasileiro, e as pessoas não têm a menor legitimidade de engolir esses direitos do povo brasileiro. A Ciência e Tecnologia são um bem público, como é a educação universitária. Então, esse é um problema também político, para ser resolvido, inclusive, dentro da nossa SBPC. Todas as vezes que nós indicamos o que é ser periférico no nível local, na verdade, nós estamos expondo o caráter nacional brasileiro.”
Carta de Curitiba ressalta grupos historicamente discriminados
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência criou a tradição de, em suas Reuniões Anuais, elaborar um documento com o compilado dos debates realizados, apontando as diretrizes e urgências para o Brasil.
Representando a 75ª Reunião Anual, realizada na Universidade Federal do Paraná, a “Carta de Curitiba” destaca, em um de seus tópicos, a essência das articulações na mesa-redonda sobre a visibilidade da Ciência produzida na Amazônia, reforçando o combate à invisibilidade povos historicamente reprimidos:
“Ninguém pode ser discriminado por sexo, gênero, cor, etnia, orientação sexual, origem geográfica, nem por credo religioso ou descrença, nem por suas ideias políticas, pelo menos enquanto respeite os outros e não viole as leis e os códigos de conduta em sociedade. Tal respeito inclui tanto o reconhecimento dos direitos e de espaço para os grupos historicamente discriminados, quanto a possibilidade de nosso País aproveitar seus talentos, necessários para nosso crescimento como sociedade e como economia. Não deveríamos precisar dizer isso, porque é óbvio, mas em nossos tempos, infelizmente, dizer o óbvio às vezes é imperioso”, pontua o documento. Confira a carta completa.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência