Enquanto o Brasil não realizar as demarcações de terras indígenas, não reconhecerá os direitos desses povos na prática. Esta é a principal reivindicação de lideranças e coletivos. Após o País viver quatro anos de desmonte das políticas públicas para essas populações, o que se refletiu diretamente no aumento da violência, o atual Governo Federal criou uma estrutura política dedicada aos direitos dos indígenas e povos originários – mas ainda faltam ações.
“Temos trabalhado em várias frentes em relação às demandas das populações indígenas. Nós temos as demandas sobre a linha ambiental, sobre a temática de combate à violência, sobre a temática de agroecologia. Mas essas várias linhas acabam, de certa forma, se acentuando e nascendo de um único tronco, que é a discussão territorial”, afirma Maynamy José Santana da Silva, líder da comunidade Xucuru-Kariri.
Maynamy explica que toda política social brasileira nasce de uma premissa e de uma lógica urbana que, além de colocarem a população indígena como minoria, desconsideram que esse status de minoria vem de um processo de colonização que segue em curso até os dias atuais.
“A diminuição territorial causou e vem causando às populações indígenas uma imposição sistemática de um modelo de viver, de existir, de se relacionar, no qual ele não é aceito, do qual ele não é pertencente”, complementa.
Para a liderança, essa apropriação territorial tem causado as mazelas sociais que acabam afetando os povos indígenas. “Nós temos um alto índice de violência contra os povos indígenas, temos insegurança alimentar, o problema da reprodução cultural e espiritual impactada pela diminuição dos territórios, o modelo de viver, de existir, de se relacionar, as tradicionalidades, ancestralidades, tudo isso é impactado em decorrência do território.”
Maynamy é uma das lideranças que percebeu a importância do campo político para exigir os direitos de sua comunidade, e se tornou um dos participantes mais ativos nos debates envolvendo os direitos de sua população e a preservação territorial. Como consequência, foi convidado a chefiar a Superintendência de Políticas para os Povos Indígenas, instalada pelo Governo de Alagoas.
“Para as populações indígenas, o que se diferencia de todo o resto da população mundial é a sua visão do que é o território. A terra não é um processo de dominação, não é capital, acúmulo de patrimônio, de riqueza e de poder, mas é a sua mãe, aquela que os alimenta e os sustenta, e que lhes dá os meios e as condições necessárias para sua sobrevivência. Em decorrência disso, todas as políticas públicas que têm uma lógica urbana são literalmente inefetivas para o território indígena, porque elas não têm o olhar e o recorte territorial.”
Uma das principais ações que desconsidera a visão da comunidade indígena é o projeto de lei nº 490 de 2007, popularmente conhecido como Marco Temporal. Com o PL, as decisões sobre demarcações de terras indígenas saem da instância do Poder Executivo, ou seja, da Presidência da República e seus órgãos, e passa para o Poder Legislativo, composto pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.
O Marco Temporal nasceu de uma tese jurídica, segundo a qual que os povos indígenas teriam o direito de ocupar apenas as terras que já ocupavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data em que a atual Constituição Federal foi promulgada. Caso seja sancionado, as ocupações fora deste período seriam analisadas pelo Legislativo.
“O Marco Temporal tem uma interpretação que desconsidera nossa realidade histórica e cultural, além de violar tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração dos Povos Indígenas da ONU e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante a consulta livre prévia e informada, além de afirmar a obrigação do governo em reconhecer e proteger os valores e práticas tradicionais, culturais e espirituais próprias dos Povos Indígenas”, afirmam lideranças indígenas, em manifesto do “Grande Encontro das Lideranças Guardiãs da Mãe Terra”.
No final de julho, 54 lideranças indígenas atenderam a um chamado do Cacique Raoni e se reuniram no Parque Nacional do Xingu, localizado na Amazônia. O encontro teve como objetivo gerar um documento que alertasse o Governo Federal sobre as prioridades da agenda indígena. O documento foi entregue à ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara.
Como principal ponto, o manifesto repudia o Marco Temporal. “Ao restringir a demarcação apenas às Terras Indígenas que estavam estabelecidas antes de 5 de outubro de 1988, ignora nossa memória e história por ações de colonizadores, latifundiários e empreendimentos econômicos de deslocamentos forçados, violências, massacres e expulsões vividos em nossos territórios tradicionais, o que resultou em perdas irreparáveis para nossas culturas e modo de vida.”
Após o encaminhamento do documento ao Governo Federal, as lideranças pediram uma resposta até esta quarta-feira, dia 9 de agosto, em que é comemorado o Dia Internacional dos Povos Indígenas.
O repúdio ao Marco Temporal também está presente na “Carta de Curitiba”, um manifesto público de defesa da democracia “e tudo que ela implica”, elaborado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O documento foi votado e aprovado por unanimidade na Assembleia Geral de Sócios da SBPC, reunida no dia 27 de julho, durante a 75ª Reunião Anual da SBPC.
“O respeito aos povos indígenas é um dever ético de primeira ordem. Repudiamos, assim, a tese do Marco Temporal e reconhecemos seu direito a suas terras, costumes, cultura, línguas, saúde e vida”, destaca a entidade. Confira o documento completo.
O projeto de lei do Marco Temporal foi aprovado pela Câmara dos Deputados em maio e segue para votação no Senado Federal, que se comprometeu a votá-lo neste mês de agosto. Em paralelo, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem uma sessão marcada para debater se a data de promulgação da Constituição, em 1988, pode servir como marco temporal para as decisões acerca das demarcações de terras, mas o órgão já adiou este julgamento oito vezes.
Quatro anos sem demarcações de terras
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) lançou no final de julho o seu relatório anual Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, com os dados correspondentes ao ano de 2022. Além de enumerar a quantidade de ataques que essa população sofreu – foram 158 conflitos por direitos territoriais e 309 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio, que afetaram, pelo menos, 218 terras indígenas em 25 estados do País – o dossiê também monitora as demarcações realizadas ano a ano.
“O ano de 2022 encerrou um ciclo de quatro anos no qual nenhuma terra indígena foi demarcada pelo Governo Federal. Sob Bolsonaro, o Poder Executivo não apenas ignorou a obrigação constitucional de demarcar e proteger as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos originários, como também atuou, na prática, para flexibilizar este direito, por meio de Projetos de Lei (PLs) e de medidas administrativas voltadas a liberar a exploração de terras indígenas”, alertou o documento.
Para o líder Maynamy José Santana da Silva, da comunidade Xucuru-Kariri, os debates sobre a agenda indígena sempre esbarram em antagonismos políticos, incoerências que devem ser combatidas, não só pelos direitos das comunidades indígenas, mas em prol do desenvolvimento sustentável do País.
“O Brasil produz alimentos para 1/6 da humanidade, mas, ao mesmo tempo que tem capacidade para contribuir significativamente para a quebra da fome no mundo, não consegue acabar com a fome dentro do seu próprio território. Isso é um antagonismo político. Quando nós debatemos o território indígena, encontramos mais uma incidência desse antagonismo, dado que a maior parte da população brasileira é indígena, negra, quilombola, de terreiro e cigana, e somos considerados minorias.”
Rafael Revadam – Jornal da Ciência