Editorial: Direito de escolha

Na editoria especial do JCN desta sexta-feira, propomos uma discussão aberta e esclarecedora sobre a descriminalização do aborto, pautada por evidências científicas e direcionada, acima de tudo, para a defesa do direito das mulheres a tomarem decisões informadas sobre seus corpos e suas vidas

whatsapp-image-2023-09-29-at-11-47-37A análise da ação que visa à descriminalização do aborto nas doze primeiras semanas de gestação, atualmente em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF), é uma questão urgente e crucial para o Brasil. Na semana passada, a ministra Rosa Weber proferiu um voto favorável à medida, desencadeando debates intensos em todo o país.

A descriminalização do aborto é um tema complexo, que transcende a polarização política e religiosa. É uma discussão que envolve a saúde pública, os direitos humanos e a igualdade de gênero, e que precisa ser fundamentada na realidade dos fatos: a proibição do aborto não impede sua ocorrência, mas, em vez disso, coloca em risco a vida e a saúde das mulheres que se submetem a procedimentos clandestinos e inseguros. E são as mulheres pobres e marginalizadas as que mais sofrem com essa proibição e hipocrisia, pois as mais ricas têm livre acesso a serviços de saúde seguros – isso não é segredo para ninguém.

Aproximadamente 45% de todos os abortos no mundo acontecem clandestinamente, levando à morte quase 40 mil mulheres a cada ano e causando complicações de saúde em milhões de outras. No Brasil, uma em cada sete mulheres, aos 40 anos, já passou pelo procedimento, e 52% delas eram menores de 19 anos quando o fizeram, de acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021. A cada 28 internações decorrentes de aborto inseguro em nosso país, uma mulher morre.

Uma gestante pode levar, em média, de dois a três meses para encontrar um programa de acolhimento aqui. E, embora o aborto seja algo recorrente em todas as camadas sociais e grupos populacionais, na última década, seis em cada dez mortes por aborto ocorreram entre mulheres pretas ou pardas. Mulheres negras têm mais de duas vezes o risco de morte em comparação com mulheres brancas.

Esses números podem ser ainda maiores, posto que também sofremos de uma crônica falta de transparência nas informações públicas sobre o aborto. Apenas seis das 27 unidades federativas do País disponibilizam informações sobre o procedimento nos sites das secretarias de Saúde.

A descriminalização do aborto não significa promover o aborto, mas sim reconhecer a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo. A decisão de interromper uma gravidez deveria ser uma escolha pessoal, íntima e privada. E essa escolha precisa ser amparada por um sistema de saúde que garanta o devido acompanhamento médico e o respeito aos direitos e à dignidade da mulher. Países que adotaram políticas semelhantes viram melhorias significativas em seus indicadores.

Insistindo: ninguém defende ou prega o aborto. O que está em jogo é o direito a abortar, o que, segundo a experiência dos países mais desenvolvidos, é utilizado em situações que tornam a condução da gravidez até seu fim extremamente preocupante – ou porque a gestante foi abandonada pelo companheiro, ou porque não tem condições econômicas de criar um filho, ou inúmeras outras questões, na maior parte fruto de problemas sociais. Evidentemente, nada impede, se e quando o aborto for autorizado no Brasil, as entidades contrárias a ele de promoverem medidas para acolher as gestantes em situação de risco, dando-lhes condições psicológicas e materiais para terem um filho. Contudo, anos de discussão sobre a legalização do aborto, negada sob pretextos questionáveis, não mostraram, por parte dos que se dizem contrários ao aborto, nenhuma ação consistente na direção que mencionamos. O que temos no Brasil é uma política repressora, que penaliza e traumatiza as mulheres.

É verdade que são pouquíssimas as pessoas presas, no Brasil, por aborto. Na versão de 2018 do Cadastro Nacional de Presos, elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/08/bnmp.pdf), nem mesmo aparece o aborto como crime pelo qual alguém esteja detido. Na lista de porcentuais às pp. 47-48 do Cadastro, em que o tipo penal do roubo responde por mais de 27% de presos, o tipo com menor número de pessoas privadas de liberdade é o do motim de presos, correspondendo a 0,04% do total de aprisionados – ou seja, numa população carcerária de 602 mil pessoas, teríamos apenas 240 presos por motim. O número de presos por aborto, sejam mulheres, sejam médicos, seria inferior a essa quantidade. Apenas para efeito de comparação, a população encarcerada por tráfico de drogas é o segundo tipo penal mais frequente, com 24,74% do total, importando assim cerca de 150 mil pessoas. Note-se que mulheres presas por tráfico são um contingente muito elevado, conforme expõe, de forma comovente, Drauzio Varela em seu notável Prisioneiras. Ou seja, o problema da proibição do aborto não é a punição das pessoas que abortam, é antes o fato de que uma prática muito frequente na sociedade se vê forçada à clandestinidade, com efeitos perversos sobre a saúde física e mental das mulheres que interrompem a gestação. Na verdade, a penalização do aborto traz duas principais consequências altamente negativas: primeira, que a interrupção da gestação se dê em condições de saúde precárias; segunda, que simbolize o controle do Estado sobre a vida feminina, num patamar que não existe sobre a vida ou conduta masculina.

O voto da Ministra Rosa Weber pela descriminalização do aborto, embora não se entenda por que ela tardou tantos anos após as audiências que convocou sobre o tema, perdendo assim a oportunidade de conduzir uma votação definitiva no STF a respeito, abre uma oportunidade para aprofundar o diálogo sobre a questão e conhecer diferentes perspectivas. Na editoria especial do JCN desta sexta-feira, propomos uma discussão aberta e esclarecedora, pautada por evidências científicas e direcionada, acima de tudo, para a defesa do direito das mulheres a tomarem decisões informadas sobre seus corpos e suas vidas.

Renato Janine Ribeiro – presidente da SBPC

Veja abaixo as notas do especial da semana – Descriminalização do aborto no Brasil:

STF, 22/09/23 – Relatora vota pela descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação; julgamento é suspenso

UOL, 23/09/23 – Rosa combinou com colegas do STF para votar em casos espinhosos como aborto

Brasil de Fato, 28/09/23 – Mulheres vão às ruas pela legalização do aborto para que Brasil se some à ‘onda verde’ latino-americana

Correio Braziliense, 22/09/23 – Aborto é legalizado em 77 países mediante solicitação

Poder360, 23/09/23 – Legalização do aborto no Brasil divide eleitores, diz estudo

BBC Brasil, 22/09/23 – As mudanças na legislação brasileira sobre o aborto nos últimos 100 anos

G1, 26/09/23 – Em reação ao STF, oposição no Senado apresenta pedido de plebiscito sobre aborto

Jornal da USP, 22/09/23 – Nem presa, nem morta: por que descriminalizar o aborto?

Gênero e Número, 21/09/23 – Brasil tem uma morte a cada 28 internações por falha na tentativa de aborto

Abrasco, 22/09/23 – Por que legalizar aborto no Brasil?

Intercept Brasil, 01/05/23 – Menos de 4% das meninas de 10 a 14 anos grávidas por estupro têm acesso ao aborto legal

Gênero e Número, 31/03/23 – Abortos caem, mas ainda levam 2 a cada 5 mulheres ao hospital

The Conversation, 21/09/23 – Uma breve história do aborto – das ervas egípcias antigas ao combate ao estigma hoje

Jornal da USP, 29/09/23 – Eticamente, é importante reconhecer o direito da mulher ao aborto