As Humanidades e o elo perdido entre a sociedade e a ciência

Conferência promovida pela SBPC discutiu os desafios das ciências humanas frente à polarização e a deslegitimação da ciência

Marilene, Adorno....

A falta de conexão e diálogo pode estar na raiz da perda de legitimidade da ciência frente a uma parcela considerável da sociedade polarizada. Entender essa relação é o grande desafio das Ciências Humanas nos dias atuais na visão dos pesquisadores e especialistas que discutiram o assunto durante a Conferência Livre “A contribuição das Ciências Humanas e das Humanidades para o desenvolvimento do Brasil”.

Promovido nesta terça-feira (26/3) pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o evento integra as atividades preparatórias para a 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (5ª CNCTI), que o Governo Federal realiza em junho, em Brasília, para definir a Estratégia Nacional para o setor nos próximos dez anos.

O encontro online foi aberto pelo presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, expondo a questão que permeou os debates: “Talvez seja o sintoma mais agudo da crise do nosso tempo seja o fato de que tanta gente perdeu a possiblidade de diálogo, o fenômeno que chamamos descritivamente de polarização, que entendo seja uma descrição, mas não uma explicação”, argumentou Janine         Ribeiro. “Daí, por sinal, a hostilidade da extrema-direita tanto a jornalistas, que lidam com os fatos, quanto a cientistas, que explicam fenômenos – e quando se nega a própria realidade, o diálogo fica praticamente impossível, ameaçando assim o tecido social”.

Foram quatro sessões ao longo do dia. A primeira, que começou às 9h, intitulada “Redes sociais, cultura de ódio, polarização: o tecido social sob ameaça”, foi coordenada pelo sociólogo Sergio Adorno, da Universidade de São Paulo (USP). Participaram como expositores Wilson Gomes, professor titular de Teoria da Comunicação na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e Marilene Corrêa, diretora da SBPC, professora e pesquisadora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Wilson Gomes lembrou que a desconfiança na ciência atingiu um ápice quando milhões de mortos pela covid-19 não foram suficientes para convencer grande parte da população sobre os benefícios das vacinas, recomendações e tratamentos médicos. O ambiente social, descreveu ele, foi contaminado pelo negacionismo científico que ainda perdura.

“Se tivermos uma pesquisa sobre a legitimidade ou reconhecimento da ciência no Brasil hoje, vamos ver que o conjunto de atitudes e descrença na ciência é absolutamente paralelo a certas ideologias políticas”, observou Gomes. Segundo ele, o posicionamento anticiência não se limita à extrema direita, mas atinge também grupos progressistas identitários, que buscam revisar o passado na “caça” ao racismo, homofobia e colonialismo.

Em síntese, Gomes apontou dois problemas fundamentais: “Cabe às ciências humanas, por um lado, examinar as condições de erosão da legitimidade da ciência na sociedade contemporânea e, por outro, restaurar as condições para o desenvolvimento científico”, afirmou.

A cientista social Marilene Corrêa focou sua exposição no território amazônico que, na visão dela, tem ganhado relevância internacional antes mesmo de ter reconhecida sua importância em nível nacional. “A Amazônia passa a ser vista como biodiversidade e ecossistemas, uma visão que oblitera o entendimento da região”, afirmou.

Ela destacou as deficiências da região em termos de políticas públicas de saúde, segurança, educação e mesmo na produção de ciência. “Em canto algum do Brasil os campos disciplinares das universidades federais e das universidades públicas não têm sua voz reconhecida em todos os níveis de comitês e expressões de comando e controle das políticas nacionais de ciência e tecnologia. Devo dizer inclusive que, nesse campo, as ações dos nossos ministérios são setoriais, as ações das nossas agências são setoriais, sequer podem ser pensadas como políticas nacionais propriamente ditas”, criticou.

Para o coordenador do debate, Sergio Adorno, um passo para compreender os laços e a cooperação na sociedade é identificar a “persistência da violência” que está na base da cultura do ódio. Dedicado à pesquisa sobre o tema na USP, Adorno afirmou que a violência é uma forma de ação, envolvendo o uso da força, que interfere nas relações, muitas vezes como forma de dominação. Na visão dele, diante do histórico de violência persistente e crescente no País, desenvolveu-se na sociedade brasileira uma disposição para não aceitar o outro. “Pessoas que não comungam os mesmos padrões de comportamento, das mesmas ideias em relação à religião, à fé, etc., são consideradas inimigos que devem ser eliminados”, frisou.

Assista à conferência na íntegra pelo canal da SBPC no Youtube

Janes Rocha – Jornal da Ciência