Neste ano, pelo menos R$ 1,5 bilhão destinados ao fomento da ciência serviram para custear o Ciência sem Fronteiras. Um dos projetos que pode ser prejudicado é o desenvolvimento de uma vacina nacional anti-HIV
Recursos que deveriam ser destinados a pesquisas científicas estão sendo deslocados para pagar as contas do programa Ciência sem Fronteiras (CsF), uma das principais vitrines eleitorais da presidente Dilma Rousseff. Só no orçamento deste ano, cerca de R$ 1,5 bilhão de dois fundos do Ministério da Ciência e Tecnologia serviram para investir na iniciativa do governo federal, que prevê a concessão de 101 mil bolsas de estudos no exterior até 2015. Pelo menos 75 entidades científicas brasileiras reclamam do desvio da verba. Um dos principais motivos é que o CsF atende, em sua maioria, bolsistas sem projetos de pesquisa. Entre os 74.739 estudantes já beneficiados, 80% estão inscritos em cursos de graduação.
Desde o ano passado, o Ciência sem Fronteiras é mantido por três fontes de renda. Uma delas é o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), principal recurso de financiamento das agências públicas de fomento à pesquisa. De acordo com levantamento do Contas Abertas, o orçamento do fundo previa, em 2013, repasse de R$ 307,6 milhões ao programa, o que representava 8% da dotação total do FNDCT de R$ 3,8 bilhões. Este ano, o comprometimento é bem maior — dos R$ 3,6 bilhões autorizados para as despesas da fonte, R$ 992 milhões, ou 27% do total, serão destinados ao CsF.
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que gerencia o Ciência sem Fronteiras em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), é responsável por repassar mais R$ 566 milhões ao programa, além dos recursos destinados ao FNDCT. “O programa é interessante, tem seu mérito. Mas ele está drenando a verba para a ciência”, avalia a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Helena Bonciani Nader. Para a cientista, essa redução dos repasses pode afetar linhas de pesquisa mantidas por programas e agências de fomento estaduais.
Uma das pesquisas prestes a ser prejudicada é a do grupo de cientistas da Universidade de São Paulo (USP), que tenta desenvolver uma vacina contra a Aids, totalmente nacional, desde 2002. Com sucesso, a imunização já passou por testes em camundongos e pelos primeiros ensaios em macacos, com financiamentos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), do CNPq e do Ministério da Saúde na ordem de R$ 1,5 milhão. Diante da redução de recursos para o fomento à pesquisa científica, Edecio Cunha Neto, pesquisador que lidera os trabalhos, considera difícil estimar quando a vacina anti-HIV poderá ser disponibilizada para programas de imunização do vírus.
A vacina ainda precisa passar pela fase 3 do ensaio clínico, que mensura a eficácia. Trata-se de um teste realizado com milhares de pessoas para saber se o grupo vacinado registrou menos infecções em relação ao que não foi vacinado. Essa etapa, porém, requer recursos significativos, na ordem de US$ 50 milhões a US$ 100 milhões.