Uma semana marcada por memórias e saudades. A 76ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em Belém, de 7 a 13 de julho, foi dedicada à memória de Ennio Candotti, físico e presidente de honra da SBPC, que faleceu em 6 de dezembro de 2023 e cuja ausência física não apagou sua presença constante no encontro. Em uma sessão especial realizada no dia 10 de julho, na Universidade Federal do Pará (UFPA), sede desta edição da RA, amigos e familiares contaram lembranças marcantes deixadas por Candotti em suas vidas.
Curiosamente, a primeira reunião anual da SBPC em décadas sem Candotti ocorreu na Amazônia, região que o conquistou. Mais curioso ainda é que em 2007, justamente a última reunião anual sediada em Belém antes desta de 2024, ele, então presidente da entidade, plantou a semente do Museu da Amazônia (MUSA). Candotti sugeriu ao governador do Amazonas na época, Eduardo Braga, e à reitora da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Marilene Corrêa, a criação de um museu na floresta. Artífice que era, não demorou muito para que o sonho se concretizasse, e, em janeiro de 2009, foi fundado o MUSA.
No painel dedicado à memória de Candotti, no dia 10 de julho, Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, lembrou que ele foi o presidente mais longevo da entidade, destacando seu engajamento na luta pela ciência e pela democracia. “Ele tinha um interesse amplo pela ciência e pelas artes, sempre preocupado com a justiça social”, disse.
Ildeu de Castro Moreira, presidente de honra da SBPC, destacou a intensa batalha de Ennio Candotti dentro da SBPC para fortalecer as Secretarias Regionais, enfatizando que “sua briga era pela presença nacional da ciência, pela descentralização da SBPC, pela representatividade das regiões.” Moreira afirmou que essa luta transformou a SBPC, trazendo uma visão mais abrangente do Brasil para a comunidade científica e ressaltou a importância mútua dessa relação: “A SBPC foi essencial para o Ennio, assim como ele mudou a SBPC.”
Marilene Corrêa, diretora da SBPC que abraçou o sonho do Musa em 2007, enfatizou a visão de Candotti sobre a Amazônia e seu papel na ampliação do olhar científico sobre a região. “Ao se aliar às lutas das populações amazônicas, ele se tornou indispensável na compreensão dos problemas da região. Ennio foi uma criatura de uma humanidade incrível, uma inteligibilidade da ciência e compreensão da ciência da Amazônia”, declarou.
A diretora da SBPC destacou a consolidação do Musa, que em apenas uma década tornou-se um dos museus mais visitados por turistas em Manaus. Em 15 anos, a instituição conquistou a cidade, ganhou apoio internacional e envolveu toda a população, fortalecendo também as instituições científicas da região amazônica e as redes de organismos científicos. “O MUSA eterniza a presença de Ennio Candotti na Amazônia. E a Amazônia eterniza o olhar científico de Ennio Candotti no Brasil.”
Fabio Magalhães Candotti, filho único de Ennio, emocionou os presentes ao falar sobre a relação com seu pai: “Além de meu pai, ele foi um dos melhores amigos que eu já tive, com muitos diálogos e muitas discordâncias, sempre muito construtivas.”
Fábio chegou a cursar graduação em Física, mas deixou o curso e escolheu seguir os passos do pai na defesa dos direitos humanos. Antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), lidera o coletivo de pesquisa e extensão ILHARGAS – Cidades, Políticas e Violências, e também coordena projetos sobre encarceramento no Amazonas. Em sua fala, destacou o árduo trabalho de produzir ciência na Amazônia e o legado de parceria política entre ciência e populações locais deixado por seu pai.
“Ennio acreditava no caminhar junto e construir juntos. Hoje, as universidades estão mais abertas à diversidade da população. Vemos estudantes indígenas e ribeirinhos nas universidades. As pessoas que fazem hoje os movimentos sociais estão nas universidades, estudantes das periferias, que são, provavelmente, a 1ª geração a entrar na universidade. Estão nos lugares de risco, de combate. Fazer espaços de diálogos atentos e construção de saberes impuros – a universidade tem que ser esse espaço e o MUSA é um exemplo disso.”
O painel então abriu-se para o público, de amigos e seguidores influenciados por Candotti, que contaram como o cientista marcou suas vidas.
Laila Salmen Espindola, diretora da SBPC, sintetizou o sentimento coletivo ao dizer: “Ennio foi o cidadão mais amazonense do Planeta.”
Fernanda Sobral, também diretora da SBPC, destacou a visão futurista de Candotti: “Sempre me impressionou no Ennio a visão do futuro; ele sempre estava preocupado com o futuro.”
Ana Tereza Vasconcelos, diretora da SBPC, relembrou o início de sua carreira com o físico: “Tive o prazer de conhecer o Ennio no Rio de Janeiro, em 1989, fazendo a revista Ciência Hoje. Sua paixão pela ciência, pela disseminação do conhecimento, era contagiante.”
Reinaldo Guimarães, pesquisador da UFRJ, destacou a abrangência intelectual de Candotti: “Ennio foi um intelectual público, dessas pessoas que extrapolam o seu nicho científico para outras áreas que não têm necessariamente relação com sua formação original.”
Luísa Massarani, jornalista e pesquisadora da Fiocruz, lembrou da generosidade do cientista com os jovens: “Um aspecto muito bonito do Ennio era dar oportunidade a quem estava começando.”
Ima Vieira, pesquisadora titular do Museu Paraense Emílio Goeldi, falou sobre a dedicação de Candotti em se informar e aprender constantemente para embasar suas batalhas: “Ennio corria sempre atrás de conhecer melhor e se aprofundar sobre temas que o preocupavam, para pensar e formular políticas públicas.”
Um legado indelével
Ennio Candotti foi uma personalidade ímpar na SBPC. Dedicou décadas de sua vida à entidade, a um projeto de desenvolvimento justo de Brasil, com base no conhecimento científico. Associou-se à SBPC em 1974 e foi quatro vezes presidente da entidade. Suas gestões foram marcadas por ações ousadas e corajosas. Participou da criação da Ciência Hoje, transformou-a na mais relevante publicação científica do País; criou o Jornal da Ciência, principal veículo da SBPC e referência para a comunidade científica nacional até hoje. Ainda como presidente da SBPC, promoveu interiorização da ciência no Brasil, incentivou a criação de muitas de Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (FAPs) e levou a entidade, por meio de suas secretarias regionais, a praticamente todas as regiões do Brasil. Lutou também pela democracia, foi uma liderança corajosa em movimentos sociais e políticos de resistência à ditadura militar. Liderou o movimento que pediu o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, na década de 1990.
Nascido em Roma, Itália, emigrado ao Brasil ainda jovem, Candotti foi formado pelo Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) em 1964. Foi professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de 1974 a 1996, e da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), até 2009, quando se mudou para Manaus, com a ideia de construir um Museu da Amazônia, o Musa – “uma casa de cultura e ciência, de convivência e celebração da diversidade do ser no mundo. Um lugar onde os humanos e não humanos vivem juntos, felizes”, dizia ele.
Mesmo morando em Manaus, fazia questão de participar de todas as atividades da SBPC. Na última reunião anual, em 2023, em Curitiba, foi participante em cinco debates. Incansável, em seus últimos dias, no hospital, ainda mantinha contato com seus colegas e amigos.
Candotti foi também homenageado na abertura da 76ª Reunião Anual, no Theatro da Paz, no dia 7 de julho. Esta foi a primeira reunião anual em décadas sem sua presença. Mesmo assim, se fez presente em todos os cantos. Maria Elisa Magalhães e Fábio Magalhães Candotti, esposa e filho do cientista, receberam a homenagem durante a celebração e visitaram outras atividades da reunião na Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém. Ildeu de Castro Moreira, amigo e presidente de honra da SBPC, emocionou-se ao recordar a influência de Candotti. “Ennio deixa uma saudade Amazônica”, resumiu Moreira.
Vídeo em Memória
O Centro de Memória Amélia Império Hamburguer da SBPC produziu um pequeno documentário em homenagem a Ennio Candotti. O vídeo, com depoimentos e fotos, foi apresentado na ocasião e pode ser acessado neste link.
Daniela Klebis – Jornal da Ciência