Ao longo dos anos, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) vem utilizando o período da Independência do Brasil para refletir quais os caminhos do País se tornar, efetivamente, independente. Neste ano, além de uma programação voltada a questionar o genocídio dos povos indígenas, a entidade reuniu um corpo de especialistas para debater o genocídio da população negra.
O evento foi realizado na última sexta-feira (06/09) e contou com a participação de Fausto Salvadori, diretor de redação do portal Ponte Jornalismo; Luiz Eduardo Soares, antropólogo e ex-secretário de segurança pública; e Preto Zezé, presidente global da Central Única das Favelas (CUFA). A mesa foi coordenada pelo presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, e pela diretora da entidade, Fernanda Sobral.
Na abertura, Janine Ribeiro destacou que a data da Independência, 7 de setembro, é uma data de reflexão política e que exige o olhar à história do País. “A SBPC, como em todos os anos, está comemorando a Independência do Brasil. ‘Comemorar’, aqui, vem de memória, nem sempre quer dizer aplausos. É claro que somos a favor da Independência e da soberania nacional, mas, infelizmente, temos um projeto de País bem sucedido que guarda sequelas da escravidão e do genocídio indígena. É um projeto de 500 anos para fazer em nosso País uma sociedade injusta.”
Janine Ribeiro também comentou que independência se refere à soberania nacional, mas que há também o conceito de soberania popular, que é a base da democracia, e significa que o soberano é o povo, não um monarca ou uma elite. Explicou que não há soberania nacional que seja legítima se não estiver embasada na soberania popular – e que, se nosso País ainda sente sua independência inconclusa, inacabada, é porque lhe falta soberania popular.
Diretora da SBPC, Fernanda Sobral também refletiu sobre o título escolhido pela entidade para construir essa programação especial: Independência Inconclusiva. “Quando falamos de Independência Inconclusa buscamos chamar a atenção para o fato de que o Brasil não tem a sua soberania popular. Por quê? Por conta de suas inúmeras desigualdades sociais existentes, como desigualdade de classe, de raça e de gênero. Mas além de existirem as desigualdades, se usa a violência com relação a essas desigualdades. Os genocídios são do povo indígena, do povo preto, do povo pobre, ou o feminicídio, voltado às mulheres. Esse uso da violência é um grande problema que ainda temos pela frente.”
Iniciando as falas da mesa-redonda, o diretor de redação da Ponte Jornalismo, Fausto Salvadori, elogiou o uso da palavra ‘genocídio’ para explicitar a violência recorrente à população negra no País.
“Genocídio é uma das poucas expressões que dá conta da produção de mortes de pessoas negras no Brasil, e esse genocídio está tão enraizado, que pequenas mudanças raramente conseguem mudar o quadro. O fato é que as mortes de pessoas negras não geram a comoção que deveriam gerar.”
Salvadori citou dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública que mostraram que, em 2023, a polícia matou 6.393 pessoas no Brasil, sendo 86% negras. “1 negro tem 4 vezes mais chance de morrer do que um branco. O genocídio negro tem muitos autores, e a polícia é só uma parte dele.”
Antropólogo e ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares, reforçou as falas de Salvadori, mas destacou as falhas do Judiciário. “De 2003 a 2023, nós tivemos 21.662 mortes provocadas por ações policiais, das quais menos de 10% chegaram aos tribunais”, alertou.
Soares ressaltou que, para além dos números, é importante a sociedade entender quais os seus significados dentro da estrutura do Estado brasileiro. “É inacreditável que um País, em pleno século XXI, continue convivendo com as taxas de homicídios dolosos, as taxas de crimes letais intencionais, com um alto índice de violência policial absolutamente impune, e com as taxas de encarceramento em massa, nas proporções que são as do Brasil.”
Segundo o antropólogo, o País, hoje, possui 852 mil pessoas encarceradas, sendo uma população majoritariamente negra, de classes mais pobres, e oriunda de territórios mais vulneráveis. Deste total, o subgrupo maior são as pessoas que estão aguardando condenações por tráfico de drogas, cerca de 30% da população presa – e entre os que aguardam, as mulheres são as que mais esperam: 60% do total que está cobrindo pena sem condenação.
“A grande maioria da população encarcerada por porte de drogas não são os grandes traficantes que aparecem na mídia, são pessoas que foram presas sem portar armas, sem praticar violência, sem apresentar laços com organizações criminosas. Nós estamos falando dos operadores do varejo do comércio de substâncias ilícitas, os presos em flagrantes, numa estrutura que segue em conformidade com o racismo, com as exploração de classes mais pobres e com hierarquias territoriais”, complementou.
Soares concluiu que a atual legislação contra as drogas, e seu proibicionismo, afetam diretamente a democracia brasileira, por conta dos perfis que são mais presos e mortos. “Terrível é o cenário de violência à população negra, e mais terrível é a continuidade dele.”
Encerrando as falas da mesa-redonda, o presidente global da Central Única das Favelas (CUFA), Preto Zezé, ressaltou que as sequelas dos quase 400 anos de escravidão no Brasil ainda estão presentes.
“A defesa pelos direitos da população negra precisa ser uma agenda da sociedade, não só dos movimentos negros, e cabe ao poder político criar uma agenda onde essa população pertença. Como as pessoas que moram em favelas, que produzem R$ 220 bilhões em poder de compra por ano, podem participar de uma agenda de direitos e de oportunidades igualitárias?”
O debate “Independência Inconclusiva – O genocídio da população negra” está disponível na íntegra no canal da SBPC no YouTube.
Rafael Revadam – Jornal da Ciência