“Caiu a ficha”: Paulo Artaxo apresenta a crise climática aos chefes dos Três Poderes

Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP e vice-presidente da SBPC, participou de reuniões em Brasília para discutir a resposta do País às mudanças climáticas. O Brasil precisa reduzir emissões e se preparar para eventos extremos cada vez mais frequentes e intensos, alertou ele

O Brasil, com sua localização tropical, é um dos países que vão ser mais afetados pelas mudanças climáticas, e a gente tem que preparar nossa sociedade para isso.”

Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP

 

O professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, deu a aula mais importante da sua vida nesta semana. Ele foi o único cientista convidado a participar de uma reunião de emergência convocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na terça-feira (17), no Palácio do Planalto, em Brasília, para discutir o enfrentamento da crise climática no Brasil. Além de Lula, estavam presentes na sala os presidentes das duas casas do Congresso Nacional (Rodrigo Pacheco e Arthur Lira) e do Supremo Tribunal Federal (Luís Roberto Barroso), além do procurador-geral da República (Paulo Gonet), vários ministros de Estado e outras autoridades do mais alto escalão da política nacional.

“Isso nunca tinha acontecido, de um cientista ser convocado pelo presidente para uma reunião com os Três Poderes da República. Então, isso é muito bom; é o governo se abrindo para ouvir a ciência”, relatou Artaxo ao Jornal da USP, no dia seguinte ao da reunião. Vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), coordenador do Centro de Estudos Amazônia Sustentável (Ceas) da USP e referência internacional em pesquisas sobre mudanças climáticas, Artaxo fez uma apresentação de 22 minutos, com 22 slides, sobre a gravidade da crise climática global, os riscos que ela representa para o Brasil e o que pode ser feito a respeito disso. “Nas minhas sugestões eu deixei muito claro o seguinte: ‘Isso é o que a ciência tem a dizer sobre o que precisa ser feito. Quem toma as decisões políticas sobre o que vai ser feito, e como isso vai ser feito, são vocês’.”

Artaxo alertou que o mundo está numa trajetória de aquecimento da ordem de 3 a 4 graus Celsius até o fim deste século — bem acima do limite de segurança de 1,5 a 2 graus Celsius previsto no Acordo de Paris —, e que isso terá consequências gravíssimas para o Brasil. O agronegócio e a matriz energética do País são especialmente vulneráveis, já que dependem intrinsicamente de fatores climáticos para a sua estabilidade.

“A mudança climática não vai afetar Suécia, Noruega, Canadá e Brasil igualmente. Os países tropicais vão ser os mais prejudicados, incluindo nós”, destacou Artaxo. “A saúde humana e a saúde dos ecossistemas vão ser fortemente impactadas. Não há, hoje, qualquer dúvida com relação a essa questão.”

O professor conta que recebeu uma ligação da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), Marina Silva, na tarde de domingo, 15 de setembro, convidando-o a participar de uma reunião fechada do conselho político de Lula na manhã do dia seguinte, às 9 horas, no Palácio do Planalto. Estariam presentes o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e outros integrantes do núcleo duro do governo.

Artaxo não titubeou: pegou o primeiro voo disponível para Brasília, fez sua apresentação e voltou depois do almoço para São Paulo, com a sensação de missão cumprida. Naquela mesma noite, porém, o telefone tocou de novo. Era a ministra Marina Silva novamente, convidando-o — a pedido de Lula — para voltar a Brasília e repetir sua apresentação na reunião emergencial que o presidente estava convocando para o dia seguinte, com os representantes dos Três Poderes. Assim foi feito.

As imagens da reunião, disponíveis no YouTube (veja o vídeo no final da matéria), lembram uma daquelas cenas clássicas do cinema hollywoodiano, em que autoridades políticas sentadas ao redor de uma grande mesa assistem perplexas a um cientista apresentando gráficos sobre uma catástrofe que está por vir. Do ponto de vista científico, Artaxo não disse nada de novo: mostrou os mesmos dados e argumentos que já apresentou em diversas palestras sobre o assunto nos últimos anos. A diferença é que, dessa vez, a mensagem foi entregue diretamente aos ouvidos e olhos das cabeças mais poderosas do País.

O fato de ele ter sido convocado de volta para a reunião de terça-feira indica que a mensagem que Artaxo entregou ao núcleo do governo no dia anterior surtiu efeito. “Obviamente, a ficha caiu”, avalia ele.

As reuniões foram convocadas em resposta ao agravamento da crise climática no País, que passa por uma sequência calamitosa de enchentes, secas, ondas de calor e queimadas — que podem ter origem criminosa, mas ainda assim são turbinadas pelo tempo seco e quente, que favorece a propagação das chamas. Outro contexto importante é que o Brasil se prepara para hospedar a trigésima Conferência das Partes (COP 30) da Convenção do Clima da ONU, no fim do ano que vem, em Belém (PA), que será ponto de partida para a reformulação das metas do Acordo de Paris.

Lula abriu a reunião de terça-feira reconhecendo que o Brasil não estava “100% preparado” para lidar com a emergência climática. “O que nós estamos percebendo, depois do que aconteceu no Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, é que a natureza resolveu mostrar as suas garras. Ela resolveu nos dar uma lição e dizer o seguinte: ou vocês cuidam corretamente de mim ou eu não sou obrigada a suportar tanta irresponsabilidade, tanta coisa errada e equivocada que os seres humanos estão fazendo”, disse o presidente. “Esta reunião aqui é para a gente fazer uma revisão no conceito que cada um tem sobre a questão climática no Brasil. Ela está pior do que em qualquer outro momento.”

Após a reunião, o governo anunciou a liberação de R$ 514 milhões para combate aos incêndios no País e reiterou sua intenção de criar uma Autoridade Climática para coordenar as ações de enfrentamento da crise do clima no Brasil, entre outras medidas.

A saúde humana e a saúde dos ecossistemas vão ser fortemente impactadas. Não há, hoje, qualquer dúvida com relação a essa questão.”

Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da USP

Alertas e recomendações

O primeiro item na lista de recomendações apresentada por Artaxo é zerar o desmatamento, “legal e ilegal”, em todos os biomas do País, já que isso representa a maior parte das emissões nacionais de gases do efeito estufa (48% das emissões estão associadas ao desmatamento e 27%, à agropecuária). O Brasil é o quarto maior emissor per capita de gases do efeito estufa no mundo e o sétimo colocado em emissões totais, segundo um relatório de referência do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. “Então nós temos, sim, culpa no cartório”, destacou o físico.

Também é necessário, segundo Artaxo, reforçar o combate a crimes ambientais e acelerar fortemente o processo de transição energética, substituindo o petróleo por fontes de energia limpa. Ao mesmo tempo, completou ele, é preciso implementar medidas urgentes de adaptação às mudanças climáticas, já que muitos dos seus efeitos são inevitáveis no curto e no médio prazo.

Um ponto fundamental para a elaboração e implementação de todas essas ações, segundo o professor, é o fortalecimento das instituições brasileiras de pesquisa e defesa do meio ambiente, que sofrem com a falta de recursos humanos e financeiros — entre elas, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), além de Ibama e ICMBio. “Precisamos investir na ciência de adaptação e mitigação climática para encontrar as melhores saídas para o Brasil”, afirma Artaxo.

Entrevista

Artaxo conversou com o Jornal da USP na manhã de quarta-feira (18), em sua sala no Instituto de Física da Universidade. Veja abaixo alguns destaques adicionais da entrevista.

O senhor falou recentemente, em uma palestra no USP Pensa Brasil, que a ideia de limitar o aquecimento global a 1,5 grau Celsius “só existe na cabeça de diplomatas”. O que significa isso?

O que eu quis dizer é que a diplomacia está muito atrasada em relação à realidade climática do planeta. A diplomacia trabalha com os acordos climáticos existentes, que refletem os desejos de uma parcela dominante dos países, mas que ignoram a realidade. Então, enquanto fica essa lenga-lenga, nós vamos ultrapassar, já em 2024, esse limite de 1,5 grau Celsius, que não deveria ser ultrapassado até o fim do século. Isso diz tudo.

Dois graus de aquecimento ainda é um limite factível de ser cumprido?

Não, dois graus não é factível. Estamos emitindo 62 bilhões de toneladas de CO2-equivalente (gases do efeito estufa) a cada ano e a transição energética está sendo feita de uma maneira extremamente lenta. A gente talvez estabilize as emissões globais lá por volta de 2030 — o que significa continuar emitindo, talvez, algo em torno de 70 a 75 bilhões de toneladas ao ano —, e isso já resultará num aquecimento da ordem de três graus. Isso é o que todos os modelos climáticos indicam que vai acontecer. Isso, sem contar os feedbacks positivos, como o derretimento do permafrost (solos congelados no Hemisfério Norte, que contêm enormes quantidades de gás carbônico aprisionado) e o colapso das florestas tropicais, que não são incluídos no cálculo desses modelos climáticos. Importante frisar isso.

Ou seja, dependendo do que acontecer com esses feedbacks positivos, esse processo de aquecimento global ainda pode acontecer de forma muito mais rápida e intensa?

Sim, não há dúvida disso. Não adianta a gente dourar a pílula; a nossa função como ciência é analisar os dados científicos. Os modelos climáticos não levam em conta o colapso da floresta amazônica, e trabalhos recentes indicam que esse colapso pode começar antes de 2050. Isso vai liberar parte dos 120 bilhões de toneladas de carbono que estão armazenados na Amazônia, e esse carbono vai agravar ainda mais os cenários apresentados pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).

Por isso a sua ênfase, também, na questão da adaptação, certo?

Isso mesmo. Sem adaptação, esquece. Adaptação é para ontem. O clima já mudou e nós temos que nos adaptar a isso, em todos os setores: na saúde, na indústria, na agropecuária e assim por diante; tendo a redução das desigualdades sociais como um aspecto central desse processo. Veja o que aconteceu no Rio Grande do Sul e imagina um evento desses acontecendo a cada quatro ou cinco anos. Em São Paulo, o número de dias em que chove mais do que 100 milímetros se multiplicou por quatro nos últimos 50 anos; então você tem que redimensionar toda a rede de drenagem hídrica da cidade se quiser evitar inundações, com impactos sociais gigantescos para a população mais pobre.

O senhor disse que estamos caminhando para um aumento de três graus ou mais até o fim deste século. Se essa trajetória se mantiver, quais serão as consequências disso?

As consequências estão descritas no relatório do IPCC. Os modelos climáticos até agora, na verdade, têm até subestimado os impactos reais da mudança do clima. Basicamente, o Brasil vai se tornar um país muito mais seco, particularmente na região central. O Nordeste brasileiro, que hoje é uma região semiárida, vai se tornar uma região árida, possivelmente inabitável; e uma parte da floresta amazônica vai ultrapassar um tipping point (ponto de não retorno) da sobrevivência ecológica do ecossistema. Na região Sul, por outro lado, vai chover muito mais. Esse é o caminho que nós estamos trilhando, e provavelmente será o futuro do nosso Brasil, porque a chance de reverter esses processos está ficando cada vez mais remota.

Essa aridez na região central deverá ter grandes impactos na agricultura…

Já está tendo. Já estamos observando uma redução da produtividade da agricultura brasileira no Brasil central, e isso só tende a aumentar nos próximos anos. Então, o Brasil vai ter que repensar o seu modelo de desenvolvimento, porque um Brasil tão dependente do agronegócio pode não ser viável já nos próximos anos. Isso tem que mudar. Precisamos acabar com o desmatamento, legal e ilegal, e para isso precisamos reavaliar, também, a questão do Código Florestal, que foi desenhado numa época anterior a essa emergência climática que estamos vivendo. Permitir que se destrua 50% de qualquer propriedade rural no Cerrado não tem mais cabimento; isso precisa ser olhado de novo.

São fatos difíceis de serem assimilados…

São mesmo; mas tudo o que eu estou dizendo aqui está baseado em ciência. Nada disso é achismo, nada disso é possibilidade; são questões concretas da ciência, indicando que o modelo de desenvolvimento que a gente tem, com altíssimas emissões de gases do efeito estufa, é insustentável a curto prazo. Ponto. Isso vai ter que mudar, na marra ou de uma maneira organizada. Se a gente quiser mudar essa história, temos que acabar com o desmatamento e caminhar no sentido de acabar com a exploração de petróleo, principalmente porque não precisamos dele. Temos um potencial de geração de energia eólica e solar monstruoso, e temos o maior programa de biocombustíveis do planeta. Não precisamos do petróleo; e eu enfatizei muitas vezes na reunião a possibilidade de transformar o Brasil em uma potência energética renovável.

Faz quase 30 anos que a Convenção do Clima faz reuniões anuais e negocia acordos internacionais, mas a situação continua piorando. Por que continuar fazendo essas reuniões e qual é a importância da COP 30, além do fato de ela ser no Brasil?

Eu acho que a COP 30 vai ser uma reunião especial porque nesses últimos três, quatro anos nós vimos um aumento gigantesco na ocorrência de eventos climáticos extremos. Ou seja, está cada vez mais claro que o caminho que estamos trilhando não é favorável para os negócios, nem para os governos nem para a população. Isso não acontecia 20 anos atrás. Agora mudou a trajetória, eu acho; não tem mais como ignorar o problema. Não tem mais como ignorar que a gente precisa se adaptar a essa nova realidade e trabalhar para reduzir emissões, para evitar um colapso do sistema climático global.

Veja, abaixo, a apresentação na íntegra do professor Paulo Artaxo na reunião com os chefes dos Três Poderes:

Herton Escobar – Jornal da USP