Há mais de 4.500 anos, os egípcios usavam mofo de pão para tratar feridas, sem saber que estavam explorando, de maneira rudimentar, a capacidade antimicrobiana que, milênios depois, resultaria na descoberta da penicilina por Alexander Fleming em 1928. No entanto, menos de cem anos após esta ainda recente revolução na medicina, o que um dia foi a solução começa a se tornar parte do problema: o uso indiscriminado de antibióticos está promovendo o surgimento de superbactérias, resistentes aos seus efeitos. Estima-se que, até 2050, mais de 39 milhões de pessoas poderão morrer por infecções que não respondem mais aos tratamentos disponíveis. E o problema já é grave: entre 1990 e 2021, mais de 1 milhão de pessoas morreram anualmente devido à resistência aos antibióticos.
Esses números preocupantes, publicados no dia 16 de setembro na respeitadíssima revista científica The Lancet, estão também na pauta das discussões da 79ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, que acontece desde o dia 10 e se encerra neste sábado, 28. Líderes globais estão debatendo como enfrentar, de forma coletiva, um problema que afeta desproporcionalmente os países em desenvolvimento, mas que não poupa ninguém.
Nos países mais pobres, o pouco acesso a medicamentos de primeira linha resulta no frequente recurso a antibióticos ultrapassados, que são menos eficazes e favorecem a adaptação das bactérias. Essa situação, agravada pela falta de novos antibióticos no mercado, exprime tanto uma crise de saúde pública quanto a desigualdade no acesso ao tratamento.
Nas últimas quatro décadas, o desenvolvimento de novos antibióticos avançou a passos lentos, apesar da urgência crescente. A falta de incentivos econômicos para pesquisa e inovação contribui para essa estagnação, enquanto a crise de desabastecimento de medicamentos só intensifica o uso de antibióticos menos eficazes, acelerando o ciclo de resistência.
Para reverter esse quadro, é necessário que governos e organismos internacionais promovam incentivos à pesquisa e ao desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas, assegurando que essas inovações cheguem às populações mais vulneráveis.
Além disso, o uso inadequado de antibióticos – por automedicação, tratamentos incorretos ou uso indiscriminado em animais (muito difundido na pecuária) – segue sendo um dos principais fatores que agravam a resistência. Medidas podem ser adotadas para mitigar o problema: orientações médicas claras, uso mais criterioso dos antibióticos e apoio a iniciativas que incentivem a inovação são passos fundamentais para conter a propagação das infecções resistentes.
A resistência aos antibióticos é um problema complexo, que exige soluções globais e ação coordenada. A Assembleia Geral das Nações Unidas é um momento mais que oportuno para que líderes globais e a indústria farmacêutica alinhem esforços em nível global. Nenhum país pode resolver essa questão sozinho, uma vez que as superbactérias não respeitam fronteiras.
Os avanços na saúde, desde o começo do século XX, constituem o maior êxito dos tempos recentes. Praticamente se duplicou a expectativa de vida, melhorou muito a qualidade desta última, tornou-se possível sobreviver cada vez mais anos ao término do trabalho remunerado. Tudo isso foi fruto de progressos científicos, mas acima de tudo de políticas públicas, garantindo o tratamento das águas potáveis e servidas e ainda muito mais. Porém, desafios novos surgem, não só porque surgem novos inimigos a enfrentar em nome da saúde coletiva, como também porque nossa sociedade continua marcada por desigualdades iníquas e injustificáveis.
Educar a população, implementar políticas de regulação e garantir que os profissionais de saúde sigam protocolos adequados são medidas essenciais. Mas, somente com políticas bem direcionadas, incentivos à pesquisa e uma colaboração internacional sólida, poderemos assegurar que a luta contra as bactérias – seja por meio de antibióticos ou novas soluções mais modernas e eficazes – avance continuamente, mantendo a capacidade da Medicina de proteger tanto as gerações atuais quanto as futuras.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Veja as notas do Especial da Semana – Superbactérias
Nature, 17/09/2024 – 40 milhões de mortes até 2050: número de infecções resistentes a medicamentos aumentará em 70%
Nexo, 17/09/2024 – Estudo expõe riscos de morte por resistência a antibióticos
CNN Brasil, 17/09/2024 – Resistência a antibióticos poderá matar mais de 39 milhões até 2050, diz estudo
Nature, 17/09/2024 – Combater a resistência antimicrobiana requer uma abordagem personalizada – avaliam quatro especialistas
Veja, 17/09/2024 – “Resistência antimicrobiana é problema de saúde pública”, diz especialista
Jornal da USP, 13/05/2024 – Pílula Farmacêutica #140: Resistência aos antibióticos é atual desafio de saúde pública
Nature, 17/09/2024 – Parem de postergar as ações sobre a resistência antimicrobiana – isso é alcançável e acessível
ONU News, 17/05/2024 – OMS atualiza lista de bactérias que mais ameaçam a saúde humana
ONU News, 26/09/2024 – Grandes conflitos mundiais pioram crise de saúde da resistência antimicrobiana
Agência Fapesp, 28/05/2024 – Terapia à base de luz reduz resistência de bactéria a antibióticos
Agência Brasil, 28/09/2023 – Vacinas também ajudam a conter surgimento de bactérias resistentes
Folha de S. Paulo, 03/01/2024 – Cientistas descobrem classe de antibióticos capaz de matar bactérias resistentes
Folha de S. Paulo, 06/06/2024 – Estudo identifica quase 1 milhão de substâncias potenciais contra bactérias resistentes
O Globo, 29/11/2023 – Antibióticos: cresce número de doenças fora de hospitais causadas por bactérias resistentes ao remédio
Pesquisa Fapesp, 04/01/2024 – Aumenta nos hospitais brasileiros a presença de bactérias resistentes a antibióticos
The Conversation, 29/04/2024 – Infecções hospitalares: bactérias que já estão nos pacientes também são responsáveis
O Globo – Pesquisa inédita de estudante carioca pode revolucionar tratamento de sepse no mundo
Nexo, 07/07/2023 (atualizado em 14/05/2024) – A resistência antimicrobiana, em 12 pontos