A aprovação da proposta de Emenda à Constituição (PEC) que proíbe o aborto no Brasil, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, nessa quarta-feira expõe, mais uma vez, a crueldade e crueza da violência estrutural contra as mulheres no Brasil. Em um país onde uma mulher é estuprada a cada oito minutos e uma morre a cada dois dias em decorrência de abortos inseguros, a PEC não só ignora a realidade de milhões de brasileiras como também perpetua um ciclo de exclusão, violência e morte.
Legalmente acessível a 60% das mulheres ao redor do mundo, o aborto ainda é proibido em cerca de 20 países, como Congo e Nicarágua. No entanto, independentemente das legislações vigentes, a interrupção da gravidez, seja qual for a razão, é uma realidade que atravessa a história da humanidade. O que muda são as condições em que o procedimento ocorre.
No Brasil, aos 40 anos, uma em cada sete mulheres já realizou um aborto, mas mais de 40% delas enfrentaram complicações graves que exigiram hospitalização. Entre essas hospitalizações, duas em cada três envolvem mulheres negras. Dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) revelam que as mulheres mais penalizadas pela criminalização – negras, indígenas, pobres, com menor escolaridade e residentes em áreas periféricas – são também as que vivem sob as condições mais adversas. Para elas, o aborto não é uma escolha livre, mas uma consequência da falta de acesso a serviços de saúde, à educação sexual, a métodos contraceptivos e, muitas vezes, uma resposta desesperada à violência doméstica e sexual.
O impacto da PEC é cruelmente seletivo. As mulheres brancas de classe média e alta que recorram ao aborto – como mostram os dados da PNA, abrangendo mulheres de todas as idades, classes sociais e religiões –, têm acesso a clínicas privadas, seguras e discretas. Para as mulheres pobres e vulneráveis, a criminalização significa morte, humilhação e desamparo.
Acresce que não está em jogo a descriminalização do aborto, mas simplesmente sua manutenção ou não, nos poucos casos em que a legislação brasileira o permite e que são altamente justificáveis – não importando, no caso, a oposição de princípio à interrupção voluntária da gravidez. São eles: 1) o da gravidez resultante de estupro, por ser infame obrigar uma mulher a dar à luz ao filho de seu estuprador (não poucas vezes, um familiar seu); 2) quando a vida da gestante está em sério risco, ou seja, quando pode morrer devido à gravidez; 3) quando não há nenhuma chance de que o feto viva, ou seja, quando levar a termo a gestação implicaria submeter a mulher ao horror de portar no ventre um ser fadado à morte em breve.
Por isso mesmo, é que falamos em crueldade a propósito dessa emenda constitucional, Ela não procura proteger direito nenhum, mas somente impor sofrimento. Tristes tempos esses, em que uma maioria de deputados – ainda que somente numa comissão, antes de ir seu nefando intento a plenário – se arroga o privilégio de causar dor e talvez até mesmo morte a mulheres.
Ontem, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) protestou, mais uma vez, contra esses ataques do legislativo aos direitos reprodutivos das mulheres, manifestando indignação com a aprovação da PEC no CCJ. A entidade reiterou seu compromisso com a defesa da saúde, autonomia e dignidade das mulheres brasileiras, enfatizando que tal medida “constitui um ato de crueldade e de absoluto desrespeito às mulheres do Brasil.”
O contexto político agrava ainda mais a indignação. Não é coincidência que essa PEC avance em um Congresso dominado por interesses retrógrados e machistas, especialmente na Comissão dominada por bolsonaristas, na mesma semana em que as investigações sobre a tentativa de golpe de Estado ganham destaque na imprensa. É uma estratégia que busca desviar a atenção de um ataque ao Estado de Direito para promover outro: o ataque aos direitos das mulheres e ao Estado laico.
A história da mulher brasileira é uma história de subordinação e violência. Essa PEC não resolve os problemas da vulnerabilidade, mas os agrava. Não investe em saúde pública, educação sexual ou combate à violência, mas reforça a opressão contra meninas e mulheres já excluídas.
O aborto é uma realidade social. Torná-lo mais inseguro e inacessível não salvará vidas; pelo contrário, custará mais vidas. O Congresso precisa decidir: continuará reforçando um sistema que mata e humilha ou será capaz de defender a dignidade, a saúde e a autonomia de todas as mulheres? É hora de colocar o humanismo acima do obscurantismo. Afinal, a justiça social começa quando deixamos de punir as mais vulneráveis e passamos a protegê-las.
Em junho, este editorial denunciou o PL 1904/24, outra proposta para agravar a violência institucional, buscando criminalizar o aborto até mesmo nos casos já previstos em lei, tratando vítimas de estupro como criminosas. Mas, ao perderem a parada quando tentavam prender mulheres estupradas que abortassem, os extremistas de direita aumentaram a aposta, procurando agora inscrever na Constituição o seu ódio pelas mulheres vítimas de violência.
Seguiremos retornando a este tema quantas vezes forem necessárias, em defesa dos direitos, da dignidade e da vida das mulheres brasileiras.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Veja as notas do Especial da Semana – PEC do Estupro
Jornal da Ciência, 28/11/2024 – SBPC a favor da vida das mulheres e contra a PEC do estupro
Poder360, 28/11/2024 – PEC que proíbe aborto é retrocesso de política pública, diz ministra das mulheres
Veja, 26/11/2024 – Aborto legal é um direito que vem sendo constantemente ameaçado no Brasil
UOL, 27/11/2024 – PEC contra aborto é cortina de fumaça sobre Bolsonaro e golpe
Carta Capital, 27/11/2024 – Como votou cada deputado na CCJ em PEC que pode proibir aborto no Brasil
Valor, 28/11/2024 – PEC que proíbe aborto legal é ignóbil e envergonha Congresso, diz ex-ministro da Saúde
Met Too Brasil, 26/11/2024 – Nota pública: proibição do aborto legal é retrocesso na proteção e direitos das mulheres
Oxam Brasil, 28/11/2024 – PEC 164/12: um retrocesso para as mulheres
Universa – UOL, 29/11/2024 – ‘PEC da Vida’ viola Constituição e pode matar mulheres e crianças
Folha de S. Paulo, 28/11/2024 – PEC retrógrada coloca em risco o direito ao aborto legal
Folha de S. Paulo, 28/11/2024 – PEC que acaba com aborto legal segue roteiro pirotécnico conhecido
G1, 21/11/2024 – MPF investiga atuação do Cremesp contra médicos que realizaram aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, em SP
Folha de S. Paulo, 17/10/2024 – Município de São Paulo faz apenas 15% dos abortos legais da cidade após fim do serviço no hospital Vila Nova Cachoeirinha
Correio Braziliense, 29/11/2024 – PEC contra aborto isola Brasil na América do Sul
Agência Senado, 5/7/2024 – Há 75 anos, padre redigiu 1º projeto de lei do Brasil sobre o aborto