A internet surgiu nos anos 1960 como praça pública com a promessa de um ambiente de colaboração e aproximação das pessoas e até de amplitude na percepção, na visão de “profetas” e “futuristas” da contracultura, como o educador canadense Marshall McLuhan (1911-1980) e o neurocientista Timothy Leary (1920-1996).
Em que pese ser hoje inescapável na vida moderna enquanto poderoso instrumento de comunicação, pesquisas, bancos de dados e serviços, a “web” transita uma quantidade nunca vista de notícias falsas (fake news), mentiras, desinformação e crimes digitais.
Ao ritmo do avanço tecnológico e da comunicação nas redes sociais, e mais recentemente da Inteligência Artificial, as fake news ganham novos contornos. Do descrédito às vacinas – não só da covid-19 – a imagens fabricadas da guerra Israel-Palestina, milhões de pessoas mundo afora se deixam levar por inverdades recebidas por aplicativos, colocando a vida da comunidade, da família e a própria em risco.
Cientistas e pesquisadores de diversas áreas do conhecimento estão neste momento buscando entender como a humanidade chegou ao ponto de renegar grande parte do conhecimento acumulado até agora para seguir influenciadores negacionistas dos imunizantes, do clima, da política, da história ou da geografia.
Para a comunicadora e jornalista Thaiane Moreira de Oliveira, professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), este desvirtuamento da internet enquanto promessa de liberdade tem a ver com o modelo econômico no qual foi se consolidando por meio de plataformas digitais integradas à vida cotidiana.
“Esse modelo econômico mediado por algoritmos próprios das plataformas digitais é um dos fatores fundamentais que fazem com que essa desinformação circule em determinados grupamentos do ambiente digital”, comenta Oliveira. André Ramos Tavares, ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e professor de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), reforça: “O modelo de negócios das plataformas digitais de caráter global acaba por privilegiar manchetes bombásticas, duvidosas, mas que sempre chamam muita atenção, não permitindo o mesmo tratamento para notícias (de base) científica” (leia mais na página 9).
A linha do tempo e os conceitos são importantes na construção da trajetória até aqui. E se há um marco temporal neste primeiro quartil do Século XXI, é o ano de 2016, a partir de dois processos políticos internacionais: a primeira eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e o plebiscito que tirou o Reino Unido da União Europeia, em um processo que ficou conhecido como “Brexit”.
Ambos os movimentos foram turbinados por um verdadeiro tsunami de notícias falsas e mentiras espalhadas pelas redes sociais que também atingiram o Brasil, resultando na eleição do candidato da extrema direita à época, Jair Bolsonaro, hoje inelegível.
Muitos estudiosos se dedicaram a mapear e investigar novos termos relacionados ao tema, surgidos após a movimentação política de 2016 e, segundo os pesquisadores que assinam o artigo Fake News e o Repertório Contemporâneo de Ação Política (Mendonça et al, 2023), “se há um consenso na literatura sobre fake news é a inexistência de uma definição única do termo” (veja os principais no quadro à página 7). Um dos termos emergentes naquele período foi o pós–verdade, eleito pelo Oxford Dictionary como palavra do ano de 2016. É usado para definir quando a opinião pessoal passa a ter mais relevância do que os fatos objetivos, o que se pode chamar de “eupistemologia”, ironiza o sociólogo e cientista social Jean Carlos Hochsprung Miguel, professor no Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Não que não existisse desinformação ou fake News antes, sempre existiram, frisa Miguel. Só que ganharam escala e velocidade a partir da massificação das tecnologias digitais, em especial a comunicação móvel, os pacotes de dados e o uso das redes sociais.
“Esse é um fenômeno tecnologicamente novo”, define Miguel, acrescentando que, por trás da tecnologia existe um “gerenciamento algorítmico” de empresas privadas que não oferecem transparência alguma.
Um segundo marco temporal é o ano de 2020, com a pandemia de covid-19, destaca o filósofo Wilson Gomes, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Democracia Digital. “Até então, fake news era considerado um problema da política”, afirma Gomes, lembrando que os primeiros pesquisadores que se preocuparam com o assunto eram da área de comunicação e ciência política.
Em 2020, percebeu-se que os mesmos grupos que usaram fake news pesadamente em 2016 para “ganhar eleições, satanizar adversários, mudar posições políticas”, estavam usando o mesmo modus operandi para negar a crise sanitária. “A sociedade descobriu que era possível ter fake news sobre qualquer assunto e que as consequências não eram somente atrapalhar a vida política, os partidos ou transformar a democracia, mas também matar”, frisa o filósofo.
Diante da constatação de que fake news é capaz de matar pessoas, os estudos sobre o tema ganharam uma dimensão inédita, relata Gomes, com uma explosão no número de artigos científicos produzidos por todas as áreas, em especial na saúde. “Lembro que entre 2020 e 2021 devo ter feito umas cinquenta ‘lives’ sobre isso em toda a parte, porque a gente começou a estudar primeiro e ainda não havia acúmulo de conhecimentos”, relatou.
Apesar da comprovada capacidade letal, Gomes considera exageradas as projeções apocalípticas sobre os efeitos a médio e longo prazo da desinformação, apontadas em relatórios como o do Fórum Econômico Mundial (leia mais na página 3), que fala em “potencial para gerar caos social e agitações violentas”. “A sociedade reage”, responde, lembrando que em vários países se discute e se implementam regulações das plataformas ainda que não se tenha encontrado um modelo definitivo. No caso brasileiro, as instituições têm funcionado para conter os efeitos da desinformação e notícias falsas.
“A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) das fake news (2019-2022) foi muito importante no Brasil, na minha opinião, não porque prendeu gente, mas porque, primeiro, as pessoas ficaram conscientes do alcance dessas notícias, do poder destrutivo delas; depois, se deram conta, pelas denúncias apresentadas lá, de que havia articulação, não era uma coisa espontânea, havia plano, havia gente organizada, havia mobilização, intenção, propósito”, comenta o filósofo.
Sobre o muito criticado inquérito resultante da CPI, não concluído até hoje, Gomes concorda com as críticas, mas ressalta a relevância do processo.
Passados oito anos daqueles primórdios e com Donald Trump novamente eleito, desta vez aparentemente por ter convencido a população estadunidense de suas propostas, a questão é como enfrentar o fenômeno da desinformação?
Como em todos os problemas complexos, não há respostas simples, mas os pesquisadores entrevistados pelo Jornal da Ciência convergem para o caminho da democratização da ciência e da comunicação como um norte.
Thaiane Oliveira e Jean Miguel falam em ouvir a sociedade como um todo e os povos tradicionais em especial sobre suas visões da ciência. Oliveira, que tem como tema de pesquisa desinformação relacionada à Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), destacou o último relatório sobre a percepção pública da ciência produzido pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) em parceria com o Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) e da SBPC, de 2024, demonstrando o interesse de 83% da população em ser ouvida em temas relacionados à CT&I.
Os dados mostram, na visão dela, que grande parcela da população brasileira gostaria de participar dos processos construtivos, consultivos e decisórios de fazer ciência e que este é o momento de ter um olhar mais atento para as comunidades que estão produzindo conhecimento. Povos originários e comunidades tradicionais e locais, acrescenta, demonstram que podem colaborar e contribuir em alinhamento ao conhecimento científico, tanto no desenvolvimento de tecnologias sociais como de conhecimentos próprios sobre temas como medicina ou agricultura.
“Estamos passando por um momento de crises relacionadas ao meio ambiente que afetam a saúde e outras esferas da nossa sociedade, então acho que é o momento muito oportuno da ciência fazer uma reflexão, reconhecer que nós (cientistas) não temos resposta para tudo, temos limitações sobre o conhecimento que está sendo produzido em larga escala e com uma velocidade muito grande” analisa. “Olhar também para aquilo que está sendo desenvolvido localmente pode nos dar alguns insights”, conclui Oliveira.
Jean Miguel segue a mesma linha, ao afirmar que, na condição de sociólogo da CT&I, vê a necessidade de desmistificar a ciência, desfazendo a ideia de que ela “produz fatos, que esses fatos seriam a verdade que as pessoas têm que ouvir”. “Entendo que a ciência é um conhecimento fundamental, mas que ela deve ser discutida e organizada publicamente”. Isso não quer dizer, ressalta, ser a favor de um “relativismo radical”, que cada um pode ter opinião que quiser sobre qualquer coisa e que essas opiniões têm o mesmo peso.
Por outro lado, afirma Miguel, não adianta colocar a culpa toda na ciência, pois a resposta à desinformação e às fake news, que se somam ao negacionismo, vai também pelo caminho da democratização da comunicação.
Miguel citou como modelo de resposta bem-sucedida à desinformação o caso Climate Gate, que se desenrolou no Reino Unido a partir de 2009. Resumidamente, o Climate Gate consistiu do vazamento de e-mails entre pesquisadores do clima da Universidade de East Anglia, cujas mensagens tornadas públicas foram tiradas do contexto e, a certa altura, simplesmente inventadas.
Os críticos alegaram que as mensagens entre os cientistas demonstravam falsificação de dados que comprovavam o aquecimento global. Na ocasião, o governo britânico, as universidades e as instituições de pesquisa, percebendo o risco de reforço ao negacionismo e retrocesso em medidas necessárias para combater a emergência climática, abriram dados e diálogo com a sociedade.
“O Climate Gate trouxe os cientistas para debater publicamente”, destaca Miguel. “O que eu quero dizer é que a resposta para isso precisa de um ambiente também de democratização da comunicação que tem que ter um papel fundamental nisso”, completa. Para ele, o papel da emissora pública do Reino Unido, a BBC, foi essencial no combate às fake news geradas durante o Climate Gate.
Do lado dos comunicadores, uma questão essencial é a regulamentação das plataformas digitais (leia entrevista com Eugenio Bucci na página 18), um problema que vem sendo debatido e enfrentado no mundo inteiro, pondera Rose Marie Santini, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mais que isso, afirma, o problema é sistêmico e exige adicionalmente um fortalecimento da mídia, tanto a tradicional quanto a alternativa, garantindo a sustentabilidade e a integridade informacional e financeira para que não fiquem sujeitas a um mercado predatório.
“Tem que haver políticas de comunicação que passam por regulamentação, mas também por políticas públicas de investimento e financiamento que favoreçam um ecossistema de comunicação saudável”, opina Santini. Ela destaca os estudos mostrando que agências de checagem de fatos não têm sido suficientes para combater notícias falsas e desinformação. “Não estou dizendo para os jornalistas deixarem de fazer isso (checagem), de maneira nenhuma, eles têm que fazer. Mas quando eles fazem já não adianta mais, estão enxugando gelo, porque o problema é a confiança no sistema de mídia, é o quão saudável ele é, o quanto a população confia nesse ecossistema”. E conclui: “Se as pessoas não têm confiança, o que adianta um veículo que você desconfia checar uma informação?”
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Janes Rocha – Jornal da Ciência