A nova edição da Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgada pelo IBGE, oferece um retrato ambivalente da realidade brasileira: avanços significativos convivem com desafios persistentes que exigem atenção e ação imediata e contínua. Por um lado, a redução histórica na pobreza, que caiu de 31,6% em 2022 para 27,4% em 2023 — em números absolutos, 8,7 milhões de brasileiros deixaram a linha da pobreza. Esta é, sem dúvidas, uma conquista diretamente associada aos programas de transferência de renda do Governo Federal, como o fortalecimento do Bolsa Família. Por outro lado, no entanto, permanece o desafio histórico do Brasil: 59 milhões de pessoas ainda vivem na pobreza, muitas delas em contextos de extrema desigualdade regional, racial e de gênero.
O impacto dos programas sociais vai além de números. Eles foram responsáveis por evitar que a extrema pobreza, que hoje atinge 4,4% da população, triplicasse para 11,2%. Sem essas medidas, a linha da pobreza subiria de 27,4% para 32,4%. A ampliação do benefício para crianças, adolescentes e gestantes demonstra um foco necessário nas populações mais vulneráveis, especialmente considerando que quase metade das crianças brasileiras ainda vive em situação de pobreza. Este é um fato que exige uma mobilização urgente e contínua.
Embora o acesso à internet tenha alcançado 92,9% da população, refletindo avanços tecnológicos significativos, apenas 66,1% dos brasileiros possuem acesso a saneamento básico — um serviço essencial para a saúde pública e a dignidade humana. Essa disparidade não é acidental. A priorização da conectividade digital, impulsionada por interesses políticos e econômicos, contrasta com a negligência em garantir direitos fundamentais, como o saneamento. O impacto das redes sociais nas eleições e na promoção de lideranças políticas tem ampliado o foco na digitalização do país, enquanto milhões de brasileiros continuam enfrentando condições insalubres que comprometem sua qualidade de vida. Ou seja, temos indicadores de acesso à Internet típicos de países desenvolvidos, porém, nossos dados quanto a direitos básicos, à saúde e à própria vida, continuam lamentáveis.
Outro dado preocupante diz respeito à educação: 19% dos jovens entre 15 e 29 anos abandonaram a escola antes de concluir a educação básica, somando 9,1 milhões de pessoas. Entre os motivos estão o trabalho precoce, a gravidez na adolescência e a falta de políticas públicas que promovam a permanência escolar. Este cenário compromete o futuro de uma geração e impede o país de romper ciclos de desigualdade. Sem uma educação de qualidade e inclusiva, o desenvolvimento do Brasil permanece limitado e desigual, incapaz de preparar sua juventude para os desafios do século XXI, mantendo essa população presa em um looping de atraso histórico.
A desigualdade de renda e de oportunidades segue enraizada em nossa sociedade. Trabalhadores brancos continuam recebendo rendimentos médios por hora 67,7% superiores aos de trabalhadores negros e pardos, um abismo que persiste mesmo entre os que possuem ensino superior. Mulheres, especialmente pretas ou pardas, enfrentam um cenário duplamente excludente, liderando o percentual de jovens que não estudam nem trabalham – 45,2% deste grupo. Entre elas, as responsabilidades domésticas e a maternidade precoce são barreiras quase intransponíveis para a educação e a inserção no mercado de trabalho.
A ocupação formal, nesse período, alcançou níveis recordes, com 100,7 milhões de brasileiros empregados, mas, ainda assim, a informalidade segue alta, especialmente entre os mais pobres e em regiões como o Norte e o Nordeste, onde a pobreza supera a média nacional. No Vale do Rio Purus, na região Amazônica, por exemplo, dois em cada três habitantes vivem abaixo da linha de pobreza.
O Brasil avançou, mas a redução da pobreza não significa o fim da desigualdade estrutural. Os indicadores de 2023 do IBGE reafirmam que políticas públicas consistentes e inclusivas são o caminho lógico para um país mais justo. Erradicar a pobreza e enfrentar a desigualdade não são apenas compromissos éticos; são imperativos para o crescimento sustentável e para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.
O Brasil de 2023 mostra que é possível progredir. Mas o progresso verdadeiro se mede não apenas pelos números secos do PIB, porém pelo impacto transformador que ele gera na vida das pessoas. A justiça social não é uma impossibilidade, nem uma utopia fugidia; ela é um compromisso constante, um projeto coletivo que exige visão, ciência e a recusa em aceitar a desigualdade como algo inevitável.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Saiba mais:
– Em 2023, pobreza no país cai ao menor nível desde 2012 – Agência IBGE de Notícias, 04/12/2024
– Mais médicos, mesma desigualdade regional – Folha de S. Paulo, 04/12//2024
– Brasil lidera envelhecimento na América Latina e supera México e Colômbia – O Globo, 04/12/2024
– Brasileiros têm mais acesso à internet do que a saneamento básico, diz IBGE – UOL, 04/12/2024
– Número de jovens nem-nem cai para 10,3 milhões, o menor já registrado – O Globo, 04/12/2024
– Brancos recebem 67,7% a mais por hora de trabalho do que negros – Folha de S. Paulo, 04/12/2024
– O rechaço do mercado a Lula mesmo diante da economia aquecida – Nexo, 05/12/2024
– A pobreza maior do Brasil tem cara de criança – Folha de S. Paulo, 05/12/2024