Jornalista de formação, Eugênio Bucci tem uma vasta produção acadêmica na pesquisa sobre desinformação e fake news. Nessa entrevista exclusiva ao Jornal da Ciência, ele explica por que considera que a forma de enfrentar a onda de notícias falsas que circula na internet, em especial nas redes sociais, em defesa da democracia, é a regulação.
Ex-presidente da Radiobrás (2003-2007), com passagem pelas redações dos principais veículos de comunicação brasileiros, Bucci é hoje professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP) e superintendente de Comunicação Social da instituição, além de integrante do conselho de várias organizações, como a Fundação Padre Anchieta, o Instituto Vladimir Herzog e a Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberj).
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
JORNAL DA CIÊNCIA – Da promessa de espaço aberto e democrático, arena livre para a comunicação global, a internet se transformou no que hoje parece ser um ambiente tóxico, inundado de mentiras e desinformação. Como você interpreta essa transformação?
Eugênio Bucci – Sem dúvida, desde que surgiu a “web” tivemos muitas mudanças, verdadeiras inversões às vezes. Mas eu não diria que a internet seja tóxica. Hoje, nós precisamos pensar na internet como uma espécie de cabeamento telefônico, fornecimento de luz elétrica, redes de energia elétrica que pode servir para ligar um liquidificador ou um aparelho de televisão, mover uma indústria, carregar um automóvel. Dentro da web temos plataformas sociais e essas, muitas vezes, têm servido de canal para coisas tóxicas, sem dúvida,, mas a internet é muito mais do que isso como malha que viabiliza muitos níveis de comunicação, de interação.
JC – Como se deu essa inversão na sua visão?
EB – A inversão é entre o princípio da difusão da internet, muito a partir da Califórnia, do Silicon Valley. O estudioso Yochai Benkler dizia no livro “A Riqueza das Redes” (de 2006, não traduzido para o português), que a internet quebraria as hierarquias de poder e o controle da produção pelo capital, dando abertura para relações mais colaborativas. Nada disso se verificou, o que aconteceu foi uma prevalência do capital, uma máquina que passou a servir para desinformação, para produção de ignorância, um cenário de fato preocupante.
JC – Quer dizer, é preciso separar a internet enquanto serviço público essencial, do que se formou em cima dela?
EB – Exatamente isso. A internet como substrato, como malha, ela é muito maior e muito mais ampla do que o que a gente normalmente chama de internet, que é a web.
A internet tem as bibliotecas conectadas, a gente pode consultar essas bibliotecas, comprar ingresso para show, reservar passagem, marcar consulta no SUS (Sistema Único de Saúde), isso é hoje uma dimensão indispensável da vida cotidiana. As plataformas sobre as quais se assentaram as redes sociais e certas plataformas de negócios, as “big techs”, isso sim, concentram um problema novo, inaudito, que a gente precisa equacionar, pensar, refletir e criticar – e que a democracia vai ter que superar.
JC – As chamadas “big techs” – Apple, Amazon, Microsoft, Google e outras –, que também controlam as redes sociais, faturam mais que o PIB (Produto Interno Bruto) de muitos países e são controladas por bilionários que concentram todo esse poder econômico. Que saída você vê para isso?
EB – Sem dúvida nenhuma, esse mercado é controlado hoje por poucas pessoas. É indispensável que a gente tenha clareza desse cenário. É muito comum até hoje que as pessoas reclamem que os meios de comunicação no Brasil são controlados por poucas famílias, na casa de 16, 20 famílias mais ou menos, o que pode ser verdade, conforme o ângulo de visão, e também é um problema. Mas esse problema é muito menor – estamos tratando de um fenômeno que sobrevoa as legislações nacionais e suas jurisdições, de forma que um proprietário, um controlador de um desses organismos, pode simplesmente dar uma banana para uma autoridade de um estado nacional qualquer que não seja China ou Estados Unidos. Aqui existe uma palavra-chave: essa palavra é regulação.
JC – Que tipo de regulação?
EB – A regulação imposta pelo Estado Democrático, mas não apenas. É necessário que isso se torne um assunto recorrente e regular de organismos multilaterais, como ONU (Organização das Nações Unidas), precisa ser objeto de acordo internacionais, de forma negociada, transparente, nos métodos da democracia. Essa é a única saída, regulação e acordos em organismos multilaterais.
JC – Você mencionou a ONU, acordos internacionais, mas temos visto alguns países individualmente empenhando esforços de regulação, como Reino Unido e Austrália. Você acredita que no nível individual surte resultado ou eles logo vão ter que se juntar com mais alguém, como você sugeriu, e fazer um acordo internacional?
EB – Eu não acompanho exatamente o que acontece na Austrália, eu tenho notícias, alguma coisa que acontece na Alemanha, Reino Unido, França. Há exemplos bons, tentativas interessantes nos Estados Unidos de, por exemplo, quebrar os monopólios, tudo isso é uma longa discussão. Recentemente, as “big techs” sofreram ações por causa de envolvimento de crianças em certas redes, surgem questões novas. Embora eu não acompanhe com regularidade, com método, o que se passa em cada país, é possível dizer com absoluta segurança que daí virão muitos aprendizados, muitas lições, esse é o caminho. Mas nós ainda estamos longe de achar uma solução para isso, e nesse caso tudo fica um pouco mais difícil, porque a velocidade de incremento dessas tecnologias é muito maior do que a velocidade reativa do Estado e da legislação, então há um descompasso de pulsações. Mesmo assim, o único caminho que existe é a democracia, portanto, a regulação democrática. Nós veremos promessas de regulação a partir de modelos autoritários e eu vou dizer que elas não vão dar jeito, mas elas aparecerão.
JC – A exemplo da China?
EB – A China sim, mas países menores também, Indonésia, por exemplo. Essas coisas não vão prosperar, mas a regulação nacional é importante, os acordos em organizações internacionais são igualmente importantes.
JC – A regulação é essencial, mas como você mesmo reconheceu, está distante no horizonte. Como convier com esse problema?
EB – O ambiente da desinformação é muito corrosivo, então nós estamos vivendo um tempo em que não é mais com informação que você combate adesinformação, não é mais com conhecimento que você combate à ignorância. A coisa mudou de patamar, estamos falando de um fanatismo que vai substituindo a política. Os conceitos próprios da política, o diálogo, a reflexão crítica em torno dos fatos vai dando lugar para expedientes próprios do fanatismo, que é uma espécie religião enlouquecida, demente. E se a gente não tiver consciência de que isso está acontecendo, vai ser muito difícil visualizar caminhos para seguir.
JC – Como vê o papel da mídia que passou por uma revolução nesse período? Tanto a mídia tradicional quanto a mídia alternativa…
EB – Desde que a imprensa surgiu, e com ela os meios de comunicação, nós não tivemos nenhum momento em que não tenha havido revoluções de padrão tecnológico, de procedimentos. É uma sucessão de rupturas e de mudanças profundas, não apenas cosméticas. O que é essencial para nós, aqui, é saber que a imprensa muda e sempre mudou, mas ela não pode perder o foco de cumprir sua missão de fiscalizar o poder e de abastecer a sociedade de informações confiáveis.
JC – Mas também contribui, não de forma generalizada, para a disseminação de desinformação e notícias falsas.
EB – É essencial que a gente tenha clareza: assim como a ciência, a universidade e a justiça do Brasil e de vários outros países, a imprensa também sofre ataques das forças obscurantistas. Temos que ter clareza para não cair no conto do vigário de ficar estigmatizando ou de ficar depreciando e atacando o serviço de jornalistas honestos como se eles fossem parte de uma grande armação. Existem jornalistas honestos nos pequenos veículos e existem jornalistas honestos em grandes veículos, na Folha de S.Paulo, no Globo, no O Estado de S.Paulo, no Jornal Nacional. As empresas jornalísticas têm suas contradições, seus problemas, é evidente, mas o serviço de jornalismo feito por profissionais tem sido essencial nesses dias e a democracia precisa ajudar a proteger a imprensa, principalmente a imprensa crítica e não satanizá-la.
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Janes Rocha – Jornal da Ciência