Logo nas primeiras páginas do célebre romance 1984, George Orwell apresenta as frases principais que definem o regime totalitário descrito na obra. Entre elas, estão paradoxos como: “Guerra é paz”, “Liberdade é escravidão” e “Ignorância é força”. Esses slogans ilustram como a manipulação da linguagem e da verdade são centrais para a manutenção do poder.
Faltou, talvez, “Mentira é verdade”. É o que vemos hoje, em especial depois que uma colaboradora do então presidente Donald Trump falou em “verdades alternativas” para justificar a enxurrada de mentiras que propalava.
Atualmente, vemos algo similar emergir no contexto das redes sociais e das medidas adotadas pelos seus controladores, como Mark Zuckerberg. o pretexto de proteger a liberdade de expressão, o dono da Meta prometeu que essas plataformas retirarão os limites aos discursos de ódio e informações falsas.
Essa situação levanta questões fundamentais para a democracia, que se baseia no diálogo, no respeito à diferença e na liberdade de expressão, organização e voto. Tais pilares permitem que a sociedade chegue a decisões coletivas que, se não são as melhores, pelo menos possuem o maior apoio popular.
Contudo, a liberdade de expressão tem limites éticos e legais. Ela não inclui o direito de incitar crimes, especialmente crimes contra pessoas.
Além disso, a liberdade de expressão não deve servir como escudo para a disseminação deliberada de mentiras. Ela supõe um compromisso tanto com fatos quanto com valores, o que é essencial nesse contexto. Fatos representam a realidade objetiva e devem ser apurados por jornalismo, polícia, judiciário e ciência. Daí, o compromisso com a verdade – o que, por sinal, já é também um valor. Já os valores orientam decisões baseadas nessa realidade. Nossas ações são governadas por valores, esperando-se que estes sejam positivos e não destrutivos. O jornalismo, por exemplo, busca esclarecer o que aconteceu no imediato; a ciência, por sua vez, procura compreender fenômenos em maior profundidade e regularidade.
Um caso recente ilustra essa dinâmica: o assassinato de um secretário-adjunto de Osasco por um policial a ele subordinado. O jornalismo tem a função de informar os acontecimentos, enquanto polícia e judiciário investigam e julgam. Precisamos saber o que aconteceu. A ciência, por outro lado, pode analisar padrões mais amplos, como a violência policial e seus determinantes sociais. Embora a apuração jornalística e policial leve à punição do autor, a ciência identifica os fatores estruturais que contribuem para esses atos, ajudando a prevenir sua repetição.
O respeito à verdade é central para qualquer esforço democrático. A ciência, embora nunca alcance uma “verdade absoluta”, busca aprimorar continuamente nosso entendimento, oferecendo verdades provisórias e passíveis de refinamento. Esse progresso é o oposto do relativismo, pois a ciência trabalha para encontrar verdades independentes de interesses particulares.
Diante disso, é preocupante o anúncio de que grandes redes sociais deixem de combater a desinformação e discursos de ódio sob a justificativa de liberdade de expressão. Pior ainda, que elas estimulem tais falas! Essa postura ignora o impacto devastador que essas práticas podem ter, inclusive fomentando violência e morte de inocentes.
Aliás, a chave do sucesso das redes sociais está no fato de que são mais voltadas ao entretenimento do que à informação. Elas fazem parte de um business que ganha quando engaja seus frequentadores. Isso significa que apelam a seus afetos – e infelizmente, hoje em dia, o ódio atrai mais que a amizade ou o amor: as paixões negativas de que fala a tradição filosófica entusiasmam mais do que as positivas. Tudo isso, aliás, resultando em dinheiro: quanto mais ódio, mais lucros. Daí que as redes tenham interesse em proliferarem os discursos tóxicos.
Por isso mesmo, o anúncio de que também a Meta, responsável pela maior parte das redes sociais hoje disponíveis, se desligará de qualquer compromisso com a verdade ou com a limitação ao ódio e à violência é preocupante. É um sinal claro do impacto da eleição de Trump para a direção do país mais poderoso do mundo, e dos riscos que as políticas por ele anunciadas agravem o clima nocivo de uma ordem mundial já perturbada pelas guerras na Ucrânia e no Oriente Médio.
Mais que nunca, será preciso não apenas regular as redes – para que não piorem as relações humanas – mas também assegurar a democracia. As declarações iniciais do futuro presidente dos Estados Unidos constituem ameaças. Ele sugere invadir o Panamá, anexar à força o Canal e a Groenlândia, talvez o Canadá, impor taxas de importação leoninas sobre os países que não se curvarem a ele – inclusive o Brasil. A caixa de Pandora aberta com as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio pode revelar ainda mais monstros.
Uma união ampla, internacional, pela democracia e pelos valores humanos, é, mais que nunca, urgente e necessária. O primeiro passo para tanto é o combate à mentira e ao ódio, se quisermos preservar os valores que sustentam a convivência democrática.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
Veja as notas do Especial da Semana – Controle das redes sociais x Fake News
Nexo, 07/01/2025 – Meta anuncia que vai encerrar programa de checagem de fatos
Folha de S. Paulo, 07/01/2025 – Meta elimina checagem e critica cortes latinas por derrubarem conteúdos em segredo
Folha, 07/01/2024- Anúncio da Meta indica embate contra regulação e mudança sobre conteúdos políticos e minorias
O Globo – Meta retira checagem das redes: aonde Zuckerberg quer chegar ao se aliar com Trump?
Agência Brasil, 07/01/2025 – Meta promete se aliar a Trump contra países que regulam redes sociais
Carta Capital, 07/01/2025 – Relaxamento no controle das fake news pode ter impacto grave em 2026, diz professor sobre decisão da Meta
Forbe – Especialistas Indicam Impactos com o Fim da Checagem nas Redes da Meta
The Conversation Brasil – Aliança entre Meta e Trump criará conflitos informacionais, econômicos e geopolíticos em todo o mundo
Folha de S. Paulo, 08/01/2025 – Especialistas em desinformação criticam Meta por encerrar checagem de fatos nos EUA
BBC Brasil, 08/01/2025 – ‘Meta mudou para direita, seguindo ventos políticos nos EUA’: as reações da imprensa internacional ao fim da checagem no Facebook e Instagram
Nexo, 07/01/2025 – ‘Meta inicia novo capítulo entre a política e a tecnologia’
Folha de S. Paulo, 08/01/2025 – Decisão da Meta torna regulação das redes mais urgente, diz Jorge Messias
Valor – Sidônio Palmeira critica fim da checagem no Instagram e no Facebook e defende regulação das redes
Agência Brasil, 06/01/2025 – Entidades lançam manifesto contra alteração de controle da Meta
CNN Brasil, 07/01/2025 – MPF cobra explicações da Meta sobre o fim da checagem de fatos no Brasil
Folha, 08/01/2025 – Nova regra da Meta permite ligar público LGBTQIA+ a doenças mentais
Terra, 08/01/2025 – Autor do PL das Fake News critica mudanças na Meta e defende regulamentação de redes sociais
The Conversation Brasil – Integridade da informação: Por que a regulamentação das plataformas digitais deve ser urgente no Brasil
Poder 360m 18/01/2024 – Fake news trazem riscos à democracia e à vida, diz diretora da Unesco
TSE, 15/05/2024 – TSE lança podcast sobre desinformação e impacto das fake news na democracia
Agência UFMG, 13/08/2024- ‘Democracia não é regime natural e precisa de proteção’, diz procurador-geral da União
Estado Minas, 06/09/2024 – Controle de fake news em redes sociais tem apoio de 78% dos brasileiros
Agência Brasil, 30/10/2024 – Com educação midiática, estudantes são aliados no combate a fake news