Ennio Candotti

O livro é uma homenagem à trajetória de Ennio Candotti, reunindo contribuições de figuras marcantes da história da instituição. A obra foi organizada pela Diretoria da SBPC e pelo Centro de Memória Amélia Império Hamburger (CMAIH), responsável pelo acervo da entidade. Candotti, um dos mais influentes defensores da política científica no Brasil, presidiu a entidade em quatro mandatos. Convicto de que o desenvolvimento do país estava intrinsecamente ligado à preservação ambiental, fez da Amazônia sua casa e criou um museu a céu aberto na região. Ano de publicação: 2025

PREFÁCIO

O amor pela ciência vicia?

ennio-candotti-sbpc-capa-digital-17x24cm-v2d_page-0001A SBPC vicia! O melhor exemplo desse vício tivemos em quem foi mais vezes nosso presidente, quatro ao todo, Ennio Candotti. Ele jamais perdeu de vista nossa sociedade. Como presidente de honra e membro nato do Conselho manteve até seus últimos dias o entusiasmo de quem viu na divulgação científica uma missão de vida. Tinha ideias o tempo todo. Conta-se que Napoleão quando definia seus planos de batalha, ao lhe perguntarem sobre as linhas de abastecimento às tropas, dizia: L’intendance suivra, o abastecimento irá depois. Com Ennio era parecido: esperava que as condições materiais de implantação de suas ideias existissem. O que lhe importava eram suas ideias, das quais não desistia. O lado prático não era tão relevante para ele quanto as metas. Se havia dinheiro ou não, pouco lhe dizia. Os fins eram mais cruciais do que os meios.

Suas realizações foram inúmeras. Devemos a ele – e a uma plêiade de cientistas destacados, vários deles amigos seus – a forte adesão da comunidade ao empenho em fazer conhecida a ciência. Aliás, nas últimas décadas cresceu extraordinariamente o interesse dos cientistas em dizerem o que fazem. A imagem do cientista ou do intelectual na sua torre de marfim, como a do artista que fazia arte pela arte, foi direto para o passado. Numa sociedade de massas, fica cada vez mais difícil a situação de quem não se comunica. Por todas as razões, os cidadãos querem saber o que faz cada qual, ainda mais quando emprega verbas públicas. Juntam-se aqui pelo menos duas correntes: uma, do contribuinte, que cobra, dos beneficiários de dinheiros públicos, que justifiquem onde e para que os aplicam – outra, a das pessoas em geral, que ganham, graças à ciência, qualidade de vida.

Nunca na história do mundo a inteligência foi tão importante para a simples vida de todos e de cada um. Descobertas e invenções, ciência e tecnologia avançam em uma velocidade vertiginosa. Quem tem um pouco mais de idade vivenciou tecnologias que surgiram, cresceram e depois desapareceram. Eu sempre lembro o VHS, que com o videocassete revolucionou o que era o audiovisual, e a máquina de escrever elétrica que, com aquelas bolas de metal a que chamavam de margaridas, dominou o espaço da datilografia por breves anos, antes de sumir, tanto ela quanto a própria datilografia1.

Pois Ennio, nascido na Itália em plena II Guerra Mundial, abrasileirado ainda moço, procurava fazer desse conhecimento rigoroso, a que chamamos ciência, uma inspiração para todos. Daí que quisesse, tanto, que todos tivessem acesso a ela. É muito chocante que hoje tenhamos concidadãos que usam todos os resultados da ciência – os mais visíveis sendo os aplicativos de trânsito e de compra – sem saberem qual a ciência por trás deles. Faz sentido alguém utilizar um GPS e, ainda assim, acreditar que a Terra seja plana? É claro que não, e penso que essa é uma das melhores vias, hoje, para negarmos o negacionismo: mostrar como praticamente todas as conquistas de uma vida de qualidade, em nossos dias, são devedoras do trabalho científico. Ensinar o respeito à ciência mostrando os efeitos práticos dela em nossas vidas.

Por outros caminhos, Ennio chegava a essa mesma conclusão. Assim se empenhou na criação de uma mídia de divulgação científica; assim empenhou a SBPC – numa época em que ela era uma das duas ou três principais organizações da sociedade civil, ainda no rescaldo de uma ditadura que deixara poucos espaços de respiro aos brasileiros – na luta pela democracia, contra um presidente acusado de corrupção e que seria afastado do cargo após processo justo e correto; assim, ainda, mudou-se para a Amazônia, onde teve os últimos sonhos de uma vida bastante onírica.

São esses sonhos de Ennio o melhor dele, que o fazem ser lembrado com carinho e admiração.

 

Renato Janine Ribeiro

Professor Titular de Ética e Filosofia Política na FFLCH-USP

Presidente da SBPC

 

1 Uma vez me contaram que, quando o então reitor da USP e depois disso nosso presidente de honra, José Goldemberg, distribuiu computadores portáteis pela universidade foram lhe pedir que contratasse datilógrafos para utilizá-los. Ele teria respondido: “Sabe o que é o P de PC? É computador pessoal. O próprio usuário digita.” Assim soou o fim de uma profissão inteira.

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