Faz pouco mais de um século que o mundo foi abalado pela Grande Guerra — posteriormente rebatizada de Primeira Guerra Mundial —, que, na sua origem, foi concebida por muitos como “a guerra para acabar com todas as guerras”. Esta fórmula, que hoje soa trágica e irônica, expressava uma esperança genuína de que o horror sem precedentes daquele conflito pudesse, paradoxalmente, inaugurar uma era de paz permanente. A lógica por trás dessa esperança era, no fundo, simplista e profundamente equivocada: bastaria derrotar definitivamente o mal — identificado nas potências centrais — para que o bem — representado pelos aliados — prevalecesse e a humanidade se visse livre da guerra.
Essa visão dualista, na qual um lado encarna o bem absoluto e o outro, o mal absoluto, não resiste, contudo, à análise rigorosa da história. A Primeira Guerra Mundial não foi um conflito entre o bem e o mal, entre civilização e barbárie, mas sim o trágico resultado de um sistema internacional profundamente viciado, estruturado em alianças automáticas e em uma lógica de desconfiança mútua, corrida armamentista e rivalidades imperiais.
O que levou ao desencadeamento do conflito foi um efeito dominó, no qual cada país, vinculado a pactos defensivos ou ofensivos, sentiu-se obrigado a se mobilizar militarmente após o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, em Sarajevo, em 28 de junho de 1914. A Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia. A Rússia, aliada da Sérvia, mobilizou-se. A Alemanha, aliada da Áustria, respondeu declarando guerra à Rússia e, em seguida, à França. O Reino Unido reagiu contra a invasão alemã à Bélgica. E assim o mundo foi tragado por uma espiral de destruição.
A diplomacia falhou não por incapacidade técnica, mas porque estava submetida a um modelo que tornava a paz refém da mecânica das alianças. Não havia espaço, naquele momento, para negociações que contivessem os impulsos belicistas. Cada ultimato era seguido por outro; cada ameaça, por uma resposta ainda mais grave. A engrenagem da guerra era, em última análise, automática.
A ilusão da guerra justa e as suas heranças
A crença de que bastaria esmagar militarmente o adversário para instaurar a paz revelou-se não só ingênua, mas trágica. Ao contrário de pôr fim às guerras, a Primeira Guerra Mundial lançou as sementes da Segunda. A humilhação imposta à Alemanha pelo Tratado de Versalhes, as feridas mal curadas, o colapso de impérios e a ascensão dos nacionalismos radicais (a.k.a. fascismos) formaram o terreno fértil para a catástrofe que eclodiria apenas duas décadas depois.
O século XX inteiro pode ser lido, em grande medida, como um século de aprendizado — frequentemente fracassado — sobre os limites do uso da força como instrumento de construção da ordem internacional. Nenhuma potência aprendeu suficientemente essa lição. Os Estados Unidos, a mais poderosa delas desde 1945, protagonizaram uma série de intervenções militares mal-sucedidas: não venceram na Coreia (uma guerra que terminou em impasse), foram derrotados no Vietnã, sofreram derrotas políticas na Somália, no Iraque, no Afeganistão e na Líbia. A cena dos helicópteros fugindo da embaixada americana em Saigon em 1975, assim como, quase meio século depois, as imagens do aeroporto de Cabul tomado pelos talibãs, simbolizam, de maneira cruel, os limites do poder militar dissociado da diplomacia e do entendimento político das realidades locais.
A obsessão por vitórias militares — frequentemente travestidas de cruzadas pela liberdade, pela democracia ou pelos direitos humanos — produziu, em vez disso, Estados falidos, ondas de migração, proliferação do terrorismo e desestabilização crônica de regiões inteiras.
A diplomacia como contraponto à lógica bélica
Se a guerra é, como disse Clausewitz, “a continuação da política por outros meios”, isso só reforça o princípio de que a política — e não a força — deve ser o meio privilegiado da convivência entre nações. A lição que o século XX deveria ter deixado absolutamente clara é que o uso da força, quando não integrado a uma estratégia política coerente, tende a ser não apenas inútil, mas contraproducente. A força é meio, não uma solução.
O Brasil — país que, desde a Segunda Guerra, adotou uma política externa baseada na não intervenção, na solução pacífica de controvérsias e no multilateralismo — é um dos poucos exemplos de diplomacia contemporânea que interiorizou essa lição. Sob a liderança de Celso Amorim, durante os dois primeiros governos de Lula, a diplomacia brasileira evitou alinhamentos automáticos, recusou aventuras militares e buscou sempre atuar como mediador em crises internacionais, valorizando os instrumentos da política sobre os da coerção.
Enquanto outras potências investiam na guerra como instrumento de projeção de poder — seja no Oriente Médio, na Ásia Central ou na África — ou a pretexto de intervenções humanitárias, o Brasil consolidava sua presença internacional por meio da diplomacia, da cooperação Sul-Sul e da defesa do direito internacional.
Lembro o clamor, no começo do século, por uma participação brasileira nas guerras civis da Síria e da Líbia. O que resultou da ação das potências nestes teatros de guerra apenas demonstra que nosso país acertou em não se envolver em becos sem saída, que possivelmente deixaram suas populações em piores condições do que estavam antes.
O desafio contemporâneo: o retorno da barbárie?
Infelizmente, o início do século XXI mostra que as lições do século anterior estão longe de terem sido plenamente absorvidas. O retorno do nacionalismo, do isolacionismo e da lógica das sanções e dos bloqueios — e, mais recentemente, dos ataques preventivos — indica um retrocesso perigoso.
Donald Trump, em seu segundo mandato, elevou esse padrão a níveis de voluntarismo inédito, como demonstram os ataques recentes às instalações nucleares do Irã. Jogar bombas sobre instalações sensíveis, sem qualquer plano claro de negociação ou de construção de uma paz sustentável, revela não apenas imprudência, mas ignorância estratégica. Ao contrário de conter o programa nuclear iraniano, tais ações provavelmente o aceleram, na medida em que demonstram ao Irã que, sem dissuasão nuclear, sua soberania jamais estará garantida.
Aqui está a grande diferença entre a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial – quando, antes mesmo de enviarem tropas para a Europa, eles já tinham escritórios trabalhando como se faria a reconstrução dos países devastados pelo fascismo – e suas aventuras no mundo islâmico, que eles invadiram sem nenhum plano. A debandada foi o que resultou dessa ação irresponsável, mas isso após a morte de centenas de milhares de pessoas, possivelmente milhões.
Além disso, se há algo que a história ensina, é que países que possuem armas nucleares, como Israel, Índia, Paquistão, Rússia, China ou Estados Unidos, não são atacados diretamente. A busca do Irã por capacidade nuclear, portanto, longe de ser uma irracionalidade, responde à racionalidade perversa que o sistema internacional contemporâneo impõe.
Guerra, comércio e política: três faces da mesma moeda
Benjamin Constant, no início do século XIX, expressou uma ideia notável: “O comércio é a tolerância que se torna obrigatória. Ele substitui a guerra pelas negociações”. Tanto a guerra quanto o comércio buscam, em última instância, a apropriação de bens ou recursos que estão em posse de outro. A diferença reside no método: a guerra busca essa apropriação pela violência; o comércio, pela troca voluntária.
Isso não se aplicaria apenas ao capitalismo, que torna o comércio seu pilar (aliás, quando os autores da época de Constant falam em “comércio”, referem-se a toda a economia capitalista). Se lembrarmos as lições desse grande antropólogo que foi Claude Lévi-Strauss, veremos que tudo na vida social depende de trocas: trocam-se palavras, cônjuges, bens. E essa transferência de titularidade pode se dar pela violência (como no famoso rapto das sabinas pelos romanos) quanto por bens, moeda, palavras.
Enfim, se aceitarmos a definição de Clausewitz, de que a guerra é a continuação da política por outros meios, deveremos concluir que o objetivo da guerra não pode ser outro senão um objetivo político. E, como todo objetivo político, ele pode e deve ser buscado, sempre que possível, pela via da diplomacia.
Esta constatação tem implicações decisivas. Nenhum estrategista militar sério pode ignorar que a guerra, por definição, só faz sentido se subordinada a um objetivo político claro e viável. A guerra sem política é barbárie pura, destruição sem finalidade, violência pelo prazer da violência. E a política sem diplomacia é o caminho mais curto para a guerra.
Conclusão: a paz não é o acaso, é a obra da política
A história recente demonstra que a paz não é resultado do acaso, nem tampouco da vitória militar pura e simples. A paz é uma construção política, jurídica e diplomática, paciente, complexa, cheia de imperfeições, mas insubstituível.
As guerras modernas, cada vez mais destrutivas e menos decisivas, provam que a lógica da força fracassou como método de resolução de conflitos. Resta, portanto, à humanidade reforçar aquilo que já deveria ser óbvio: o único caminho racional e sustentável é o fortalecimento da diplomacia, do multilateralismo, do respeito ao direito internacional e da construção de consensos.
Se a guerra é a continuação da política por outros meios, que a política, por sua vez, continue pela diplomacia, pela palavra, pela negociação — e que a força permaneça, como deve ser, um último e raríssimo recurso. Mais que nunca, é tempo de retomar a lição essencial de que, no concerto das nações, quem despreza a negociação está condenando seu próprio povo à insegurança, à miséria e, talvez, à própria destruição. Pois, se a maior potência militar e econômica de nosso tempo coleciona, há oitenta anos, sucessivas derrotas no campo das armas, esta lição deve ser entendida. A paz não é apenas um imperativo moral: é também uma necessidade racional.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC
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