
Leia o discurso na íntegra:
Hoje abro a última Reunião Anual de meus quatro anos como presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), com o belo tema “Progresso é Ciência em todos os Territórios”, escolhido a partir de uma proposta de nossa anfitriã, a UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco). Pensava em adotar um tom mais pessoal, porém, os últimos acontecimentos me levam a falar com mais solenidade, devidamente autorizado pela Diretoria e pelo Conselho da Sociedade, reunidos aqui no Recife. Também por isso, em vez de falar por último, falarei primeiro, para trazer a todos, desde o início destes trabalhos, o posicionamento mensagem da SBPC.
Nos períodos mais sombrios da ditadura militar, a Reunião Anual da SBPC era o principal espaço de respiração da sociedade brasileira. O país estava asfixiado pelo jugo da opressão e da repressão, mas aqui pulsava a vida – a vida, que depende da liberdade, da democracia! Naquela época, com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), éramos o centro do que veio a se chamar sociedade civil. Hoje não temos o mesmo peso, mas essa não é uma má notícia: fomos vítimas, por assim dizer, de nosso sucesso. Esculpimos, criamos uma poderosa sociedade civil no Brasil. Cresceram entidades de toda ordem que defendem, a seus distintos modos, a democracia, o Estado de Direito, a soberania nacional e popular. Assim é que hoje, aqui e agora, neste Recife marcado por grandes lutas populares – no começo do século XVIII, nas três revoluções do século XIX, em mobilizações poderosas mais próximas de nós – o Recife do Leão Coroado, herói de 1817, de Frei Caneca, mártir de 1824, de Miguel Arraes, líder do século XX – nossa tradição, nossa História, exigem que nos posicionemos sobre as ameaças que atualmente pairam sobre o Brasil e, mais que ele, sobre o mundo.
Evidentemente nos referimos às últimas notícias de Washington, com o presidente Donald Trump decidindo aplicar a nossas exportações para os Estados Unidos tarifas absurdamente elevadas, numa chantagem raras vezes vista nas últimas décadas e sem precedentes no século XXI – até mesmo exigindo que nossa Justiça absolva e solte autores de um crime detestável: um golpe contra o regime democrático, que incluía o assassinato do presidente e vice eleitos, bem como do presidente do Tribunal Superior Eleitoral. A SBPC reuniu anteontem sua Diretoria e ontem seu Conselho, que por unanimidade decidiram manifestar seu repúdio mais veemente a tal ameaça à soberania nacional, assim como ao Estado de Direito.
A democracia, no Brasil, é relativamente recente, mas fez suas provas nos últimos anos. Foi capaz de barrar as tentativas golpistas do governo passado e está procedendo ao julgamento dos criminosos. Além disso, entre os anos 1990 e os 2010, conseguiu melhorar significativamente a condição econômica dos mais pobres, dos historicamente discriminados e perseguidos. Nada disso foi fácil. Mas, na comparação com os Estados Unidos, saímo-nos bem. O equilíbrio dos poderes, invenção da Constituição norte-americana, funcionou melhor nos tempos recentes aqui do que lá. Assim, a defesa da democracia, da soberania, é o primeiro ponto que a SBPC, aqui, afirma, na minha voz.
Um segundo ponto a salientar é o do repúdio a uma taxação sobre nossas exportações decretada sob alegações mentirosas. É de todos conhecido um fato simples, elementar, inquestionável: que na balança econômica com os Estados Unidos compramos mais do que vendemos. Trump, aqui, mente. Não usarei o eufemismo de fake news para esconder o que é simples, evidente mentira. Ora, mentiras não sustentam relações consistentes.
Queremos manter as Américas como um espaço de paz. A América Latina é o maior território, hoje, imune a guerras, do mundo todo. Quando os tambores da morte rufam nos demais continentes, nosso espaço comum não conhece conflitos bélicos há bastante tempo, e o Brasil não entra em guerra com seus vizinhos há mais de um século e meio. Mas, se não queremos guerras com armas brancas ou de fogo, também não admitimos guerras híbridas, dessas que hoje proliferam pelo planeta. Não aceitamos imposições que violem nossa dignidade, a vontade livremente expressa por nosso povo em eleições livres, a segurança garantida pelo Estado de Direito.
Faz pouco mais de um século o mundo se engolfou numa guerra altamente letal, depois conhecida como Primeira Guerra Mundial – que se desdobrou duas décadas depois em conflito ainda mais odioso, ao fim do qual o fascismo foi derrotado, mas não sem antes massacrar dezenas de milhões de civis. Desde então, as sociedades criaram um regramento internacional com a finalidade de reduzir o ódio. As Nações Unidas são a instituição mais importante assim constituída – mas que hoje se vê questionada pelos vários donos da força bruta. Porém, o ódio não é inevitável, nas relações humanas ou entre países. A cooperação internacional deve prevalecer sobre os conflitos, inclusive sobre a competição, que tem seu lugar sim, mas no âmbito dos meios, nunca dos fins.
Pois não há equilíbrio ou amizade quando reina a injustiça. A paz dos cemitérios é apenas uma caricatura da verdadeira paz, aquela que se baseia em relações equitativas, em que a busca desabrida da vantagem é substituída e superada por trocas justas. Um célebre diplomata afirmou, há mais de duzentos anos, que “pode-se fazer tudo com baionetas, exceto sentar-se em cima delas”. A violência não funda nada de sólido. Ela não substitui os laços baseados no respeito mútuo. Queremos justiça! Por isso defendemos, no âmbito doméstico, políticas de redução da desigualdade social, de combate às injustiças, de inclusão dos historicamente discriminados. E, no âmbito internacional, medidas de respeito recíproco, de promoção da diversidade, de equidade no trato dos diferentes.
Um país digno, um povo altivo, quando vê sua soberania nacional ameaçada, se une. As divergências se calam, ante o valor superior da defesa de sua independência. O Brasil, que não quer guerrear ninguém, que tem a paz e o respeito à livre autodeterminação dos povos esculpidos em sua Carta Magna, não aceita, porém – ou por isso mesmo –, a violação do que seu povo decidiu, na Constituição cidadã de 1988 e nas sucessivas eleições que fortaleceram sua democracia.
Finalmente: nós, SBPC, somos uma sociedade científica, a maior da América Latina, uma das maiores do planeta, que hoje abre sua Reunião Anual, que é a maior de nossa parte do mundo. Entendemos que, quando nosso país está ameaçado, e com ele a ordem mundial laboriosamente construída após a II Guerra Mundial, é dever da comunidade acadêmica e científica brasileira defender nosso país, e com ele princípios éticos globais, começando pela paz e pelo respeito de uns a outros. Nesta hora decisiva para o Brasil, queremos contribuir para duas grandes prioridades nacionais: uma, a proteção dos vulneráveis, em especial os mais pobres, que não podem mais ser lesados por sacrifícios que escapam a sua capacidade contributiva; outra, a necessidade de aumentarmos nossa produção de bens e serviços, indispensável para garantir as políticas públicas de que necessitamos para o Brasil ser a “sociedade livre, justa e solidária” que nossa Constituição proclama, em seu início, como grande e prioritária meta nacional.
Nossa melhor contribuição será enquanto cientistas: pois é a ciência que hoje mais desenvolve a produção, seja de bens, seja de serviços; é ela também que delineia as melhores estratégias de combate à fome, à miséria, à injustiça. E é por isso que entendemos ser vital o Governo brasileiro reconhecer o papel da ciência, assim como da tecnologia e inovação, para defender nossa soberania enquanto nação e enquanto povo, assegurando os recursos que financiem os avanços na pesquisa que sejam cruciais para vencermos as ameaças que hoje pairam sobre nós.
Os exemplos dos próprios Estados Unidos, ao longo de século e meio, e da China em marcha acelerada nas últimas décadas ilustram bem como o avanço econômico e social tem como principal fator e causa esse recurso à inteligência que chamamos de ciência. É ela que ilumina as chances de um futuro melhor. É ela que dobrou a expectativa de vida em apenas um século, é ela que nos salva de doenças, que nos traz saúde e conforto. É ela também que melhora a produção de bens e serviços, sendo cada vez maior seu papel naquilo que chamamos de PIB (Produto Interno Bruto), medida puramente econômica, e no que conhecemos por IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), a grande métrica da qualidade de vida.
Torna-se indispensável, então, alertar os poderes constituídos para os riscos que há no bloqueio de fundos para a ciência. Enfrentamos atualmente restrições de diversas ordens ao financiamento da pesquisa no Brasil, sob distintos nomes, como DRU (Desvinculação de Receitas da União) ou arcabouço fiscal. Tais limitações tornam difícil darmos o melhor de nós para contribuirmos neste grande esforço nacional em prol de nosso povo. Alertamos assim o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, assim como os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, para a necessidade de tratar a ciência como o que ela é: hoje em dia, o fator mais poderoso para vencer ameaças à produção e, além dela, à soberania nacional e à soberania popular, que são indissolúveis. E com isso declaro aberta a 77ª Reunião Anual da SBPC, sob o signo da ciência, da democracia, do amor ao Brasil!
Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC
13 de julho de 2025