Ciência sob ataque: alerta global parte dos EUA e preocupa Brasil

Na 77ª Reunião Anual da SBPC, cientistas discutem os impactos da guinada anticientífica nos Estados Unidos sob o novo governo Trump e comparam o cenário norte-americano à experiência recente do Brasil
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Foto: Jardel Rodrigues/SBPC

O Brasil sobreviveu a anos de ataques à ciência em plena pandemia. Enfrentou negacionismo, desmonte institucional, cortes orçamentários e tentativas de deslegitimar universidades e pesquisadores. Mas, com união entre entidades científicas, sociedade civil e população, resistiu e resiste. Agora, os Estados Unidos vivem um momento semelhante. Donald Trump voltou à presidência e, com ele, reaparece – e com mais força – uma agenda ideológica contra a diversidade e a ciência, que intimida instituições de ensino e compromete políticas públicas globais de saúde e inovação. Este foi o tom da discussão da mesa “A reviravolta na política científica norte-americana e seu impacto global”, realizada na última quinta-feira, 17 de julho, durante a 77ª Reunião Anual da SBPC, em Recife.

“Sinta nossa solidariedade. Ciência é sem fronteiras, não é pra ser usada como arma, como moeda de trocas”, afirmou o coordenador da mesa, Renato Janine Ribeiro, ex-presidente da SBPC, que passou o bastão da liderança da entidade para Francilene Garcia também nesta quinta-feira. Janine Ribeiro destacou que os EUA, uma República democrática cuja Constituição vigora desde 1789 e que nunca enfrentou rupturas institucionais diretas, hoje vivem uma situação escandalosa: “A Suprema Corte dos Estados Unidos autorizou uma medida que permite demissões em massa no Departamento de Educação. Isso nos mostra o quanto estamos vulneráveis, desprotegidos.” Janine classificou o momento como uma “crise ética da mais forte, aqui e lá fora, em que vemos pessoas dizerem e defenderem barbaridades.”

O físico Luiz Davidovich, professor emérito do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), apontou que, atualmente, 45 instituições norte-americanas estão sob investigação por integrarem um programa de PhD (Ph.D Project, em inglês) voltado à promoção da diversidade na educação em negócios. O projeto está na mira da campanha do presidente estadunidense contra as chamadas “iniciais malditas”, conhecidas por DEI — diversity, equity, inclusion (diversidade, equidade, inclusão). Segundo Davidovich, o atual governo norte-americano promove uma ofensiva ideológica contra universidades e centros de pesquisa, semelhante à que o Brasil enfrentou com Bolsonaro e que ainda assombra o país.

Davidovich recordou os momentos de resistência das entidades científicas brasileiras, quando ele era presidente da Academia Brasileira de Ciências, como a reação à demissão do ex-diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Ricardo Galvão, em 2019, por ter mostrado, à revelia do governo na época, a dimensão da destruição da floresta amazônica. E também a formação do G6 — CNBB, OAB, Comissão Arns, ABC, ABI e SBPC, durante a pandemia de covid-19. “Nunca imaginei na minha vida que eu assinaria um documento da ABC com a Conferência Nacional de Bispos do Brasil”, afirmou.

Segundo o físico, o que está acontecendo nos EUA agora pode voltar a acontecer aqui no Brasil amanhã, e compreender o que está por trás desse movimento é um imperativo para enfrentá-lo. “Esses eventos estão acontecendo em vários países do mundo, em diferentes níveis de intensidade. Precisamos decodificar essa esfinge, entender o que está acontecendo. É uma interpretação complexa, porque há interesses muito contraditórios”, concluiu.

Convidado especial da Reunião Anual, o CEO da American Association for the Advancement of Science (AAAS), Sudip Parikh, participou presencialmente da mesa. Com tom ponderado, o executivo da principal sociedade científica dos Estados Unidos reconheceu que os cortes e retrocessos estão provocando danos inegáveis à ciência de seu país, mas destacou que ainda há espaço para recuperação. “Danos foram causados. Mas ainda podemos revertê-los. E eu me inspiro no Brasil para isso.”

Parikh destacou a importância da diversidade para impulsionar a excelência científica. Segundo contou, a AAAS foi fundada em 1848 por 87 homens brancos, mas hoje é liderada por um homem de origem indiana, filho de imigrantes, e possui um conselho majoritariamente composto por mulheres. Em um discurso esperançoso, afirmou que, apesar dos desafios, vivemos “tempos extraordinários”: “exploramos e compreendemos melhor nosso universo, produzimos medicamentos que evitam mortes e que podem, em breve, erradicar doenças como HIV e câncer. Está tudo em nossas mãos.”

Os cortes propostos por Trump, segundo ele, devem reduzir de 200 para 150 bilhões de dólares os investimentos federais em ciência — quase 25%, atingindo principalmente a pesquisa básica. “Estamos no meio dessa história, não no fim. Tudo isso pode ser revertido.” Parikh enfatizou que é necessário reconstruir a relação entre ciência e sociedade, com conversas francas com as comunidades: “Se não explicarmos por que investir bilhões em um telescópio vale a pena, como esperar que compreendam e nos apoiem?”

Ele defendeu a inclusão de estudantes estrangeiros e lembrou que 40% dos vencedores do Nobel nos Estados Unidos são pesquisadores imigrantes. “O medo é real, e nós vamos lutar. É importante reconhecê-lo e falar sobre isso. Temos que estar dispostos a reagir. As pessoas estão ajudando a destruir algo que não compreendem, e precisamos fazê-las entender.”

A pesquisadora brasileira Márcia Caldas de Castro, da Universidade de Harvard, foi bastante enfática ao descrever os impactos imediatos da nova política trumpista. “Eu sou uma pesquisadora que está sentindo os cortes na pele e não serei tão otimista.” Castro citou perdas significativas em áreas como malária, HIV, desnutrição, tuberculose e preparação para futuras pandemias. “Grandes projetos foram cortados, laboratórios inteiros foram desmantelados. Peço muito que não surjam novos patógenos circulando neste novo governo. Porque se tiver, será muito pior que a covid.”

Castro apresentou dados da revista Nature que mostram que mais de 75% dos cientistas dos EUA consideram deixar o país. Os cortes abruptos da USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), segundo projeções, podem causar até 2030 cerca de 14 milhões de mortes, incluindo 4 milhões de crianças. “Essas mortes já estão acontecendo por causa do buraco de verbas em vários países.” Ela também relatou que o próprio monitoramento do impacto foi comprometido, com a paralisação de programas de dados como o DHS.

Ela ainda alertou que, mais grave que a fuga de cérebros, é o risco de uma geração inteira desistir da ciência. “Com a fuga, os pesquisadores estarão em algum outro lugar fazendo pesquisa. Mas corre-se o risco de jogar fora uma geração de potenciais cientistas.” A esperança, diz ela, está nos países que estejam atentos e dispostos a assumir as rédeas diante do vácuo deixado pela atual política científica dos EUA. “O Brasil tem um papel a cumprir e seria muito bom ver o país tomar a liderança da produção científica nas Américas.”

A presidente da Academia Brasileira de Ciências, Helena Nader, reforçou a importância da diplomacia científica. “Diplomacia e defesa da ciência tornaram-se mecanismos essenciais para operação internacional e tomada de decisões informadas.” Nader ressaltou que a ciência, ao longo dos últimos séculos, foi responsável por muitos avanços civilizatórios, e que as ameaças atuais exigem articulação internacional. Ela citou as vacinas de RNA mensageiro, que só foram possíveis graças a anos de pesquisa, e lembrou que o próprio governo Trump, paradoxalmente, financiou parte da produção industrial das vacinas. “Tem alguma coisa a mais que nós, simples mortais, não estamos entendendo.”

Para ela, é preciso resistir às interferências políticas e combater a desinformação com base em evidências. “O futuro das políticas públicas baseadas em colaboração global depende dos esforços de todos nós.”

A sessão na íntegra pode ser assistida neste link: https://www.youtube.com/watch?v=ufYM5PBdwVs

Daniela Klebis, Jornal da Ciência