Ameaça de corte e verbas atrasadas podem levar ciência do Rio a retrocesso

Stevens Rehen está quase sem dinheiro para pesquisar. O neurocientista lidera um estudo sobre os efeitos do vírus zika no sistema nervoso cujos resultados parciais, divulgados na última quinta-feira, tiveram repercussão internacional.
Stevens Rehen está quase sem dinheiro para pesquisar. O neurocientista lidera um estudo sobre os efeitos do vírus zika no sistema nervoso cujos resultados parciais, divulgados na última quinta-feira, tiveram repercussão internacional. Mas este trabalho está seriamente prejudicado pelo atraso da verba da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio (Faperj). O órgão informou, recentemente, que a equipe do pesquisador receberia os recursos devidos. Mas, até agora, nada. Outros quatro projetos conduzidos por ele em seu laboratório na UFRJ têm financiamento de R$ 1 milhão aprovado desde o ano passado, mas a quantia não chegou.
O caso de Rehen não é isolado. A Faperj deve R$ 136,5 milhões de reais a 1.200 estudos contemplados em 2015, além de recursos para 4.500 bolsistas. Mas a situação ainda pode se agravar. O governo mandou à Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), no mês passado, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 19/2016, que, se aprovada, reduz à metade os recursos repassados para a Faperj. Para pesquisadores ouvidos pelo GLOBO, a medida significaria um retrocesso de até 20 anos na ciência fluminense.
Seria o fim de uma era de pujança para a pesquisa no estado. Nos últimos oito anos, desde que a Faperj passou a distribuir 2% da receita líquida fluminense, a produção de conhecimento pelas universidades e institutos de pesquisa aumentou em mais de 80%. Cerca de 18.800 projetos foram pagos. O Rio passou a concentrar 22% dos programas de excelência de pós-graduação do país e tem quatro universidades — Uerj, UFF, UFRJ e PUC — entre as 20 melhores do Brasil. A PEC, porém, prevê o corte de verbas pela metade — o equivalente a R$ 210 milhões.
Em nota, o governo estadual diz que a PEC ainda reservará 1% da receita fluminense a editais de pesquisa e 1% para pagamento de pessoal: “Dessa forma, será possível valorizar os recursos humanos e manter o quadro de pesquisadores”.
— Este argumento não é válido, porque hoje a verba destinada a editais equivale a 2% da receita. Se será apenas 1%, então existe um corte — rebate Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Diversas organizações científicas já divulgaram manifestos contra a medida. Grupos de pesquisa admitem que podem ser forçados a interromper estudos e dispensar bolsistas. Outras pesquisas, que estavam em fase avançada de planejamento, podem não sair do papel. Sem materiais e insumos para laboratórios, teme-se a saída de cientistas experientes e qualificados, um fenômeno conhecido como “fuga de cérebros”.
— Em breve, os recursos que usamos para o projeto da zika, que vem de outras fontes de financiamento, vão acabar — alerta Rehen, que tem 40% do investimento de seu laboratório vinculado à Faperj. — Há o risco de doutores altamente qualificados abandonarem nosso estado. Um dos pesquisadores da minha equipe, recém-chegado dos EUA, não está recebendo a bolsa da fundação, sua única fonte de renda. Os recursos referentes a janeiro só serão pagos no dia 9 de março, segundo comunicado da Faperj, e a situação será regularizada apenas em julho. Outro integrante do grupo seria contemplado com uma bolsa vinculada a um projeto aprovado no início de 2015, mas ainda não recebeu seu pagamento.
CONVITE PARA HARVARD
Diretor do Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Socioambiental de Macaé (Nupem), centro de pesquisas que integra a UFRJ, Rodrigo Nunes da Fonseca recebeu em agosto um convite para juntar-se ao Departamento de Biologia da Universidade Harvard, nos EUA.
— Não me sinto confortável em abandonar meus alunos agora, mas pode ser que, daqui a um ou dois anos, eu deixe o país — cogita. — Quase todos os laboratórios do Norte fluminense foram construídos com recursos da Faperj. Se a PEC for aprovada, no dia seguinte teremos que cortar as compras de qualquer produto, como reagentes, e os alunos não poderão custear projetos que foram aprovados em 2015.
Em meados do ano passado, o Nupem comprou, por R$ 200 mil, um equipamento para análise de DNA de micro-organismos das lagoas no Norte fluminense. A cada vez que é “ligada”, a máquina gasta cerca de R$ 5 mil. Até agora, por questões orçamentárias, ela foi usada cinco vezes.
— Eu esperava já tê-la acionado em pelo menos 20 ocasiões. Só tenho kits e receita para usá-la mais uma vez — comenta.
A neurocientista Suzana Herculano-Houzel, que desde o ano passado cogita continuar suas pesquisas fora do Brasil, destaca que, atualmente, a melhor bolsa da Faperj paga o equivalente a US$ 700 mensais. Se esta verba for cortada pela metade, não será suficiente para comprar sequer um tubo de anticorpos pelo preço original dos EUA.
— O cientista carioca já fazia milagre até 2014, quando a Faperj ainda tinha dinheiro para honrar seus financiamentos. Agora, a solução para evitar que todos os laboratórios fechem será escolher alguns poucos para continuar recebendo verbas — lamenta. — A mensagem do governo é que nosso trabalho é supérfluo, como se estivéssemos em um lugar que não sonha em atingir sua independência intelectual.
A importância da Faperj para os projetos científicos no estado pode ser medida na UFF. Lá, o número de bolsas saltou de 202 em 2006 para 720 em 2013. No mesmo período, o financiamento de projetos e bolsas pulou de cerca de R$ 300 mil para R$ 2,5 milhões.
Segundo o vice-reitor da universidade, Antonio Claudio Lucas da Nóbrega, estes índices beneficiaram, de diversas formas, as nove cidades onde há campus da UFF.
— Temos projetos como educação de comunidades indígenas em Angra dos Reis, aperfeiçoamento da agricultura em Santo Antônio de Pádua, fisiologia do exercício em Niterói. A ciência contribui para o desenvolvimento social de cada região. E agora os projetos correm risco de serem atrasados — avalia. — Em todas as universidades, os centros de pesquisa do interior serão os primeiros afetados, porque têm menos infraestrutura e tradição.
A Alerj, também em comunicado, assegura que a proposta não será “votada com pressa”, e que entidades científicas serão chamadas para discutir o projeto na assembleia nos próximos dias. Audiências públicas também discutirão as “questões constitucionais e estratégicas” da PEC.
A Faperj, por sua vez, afirma que as bolsas estão com um mês de atraso. “Alguns auxílios — programas de fomento à pesquisa — que não foram pagos em 2015 serão pagos em 2016”. O repasse de verbas para pagamento dos compromissos assumidos no ano passado serão determinados por um decreto do governador Luiz Fernando Pezão previsto para abril. O orçamento da Faperj para este ano ainda não foi definido.